Ganhei o dia duas vezes

Hoje o cansaço bateu, mas eu ganhei o dia. Duas vezes. 

Aos 4 anos, Totônio não é o exemplo de piá bom de garfo. Bem diferente de quando começou a se aventurar pelo mundo dos sólidos. O menino comia de tudo. Era um pequeno glutão. Minha vida era amamentar e cozinhar. Dormir, pra quê? 

Eu fazia panelas de comida, sempre seguindo o mesmo ritual. Cortava os legumes bem cortadinhos. Suava por causa da beterraba. A abóbora já comprava em pedaços. Fazia tudo a vapor. E na parte debaixo, na água fervente, ficava o arroz e a carne do dia. Tudo cozinhava harmonicamente. Depois era só amassar, socar tudo, apertar tudo para transformar na papinha do Totônio. Nada de liquidificador. 

Teve uma época em que comecei a comprar fígado. Não entendo como alguém pode gostar de fígado de boi, mas é muito rico em ferro, como todos devem saber. E, segundo a pediatra dele, as crianças precisam e devem ingerir proteína animal. Certa vez ela me disse que virar vegetariano é uma opção para o futuro. Então tá!

Totônio também era uma máquina devoradora de morangos. Hoje ele gosta de pêssegos. Mas, aqui em casa, não come frutas e verduras como outrora. 

Na escola, o papo é diferente. Ele come melhor. 

Em tempos de quarentena, Totônio só pensa em comer carne de porco. Bacon, linguiça, doguinho. Mas hoje. Ah, hoje! Ele comeu peixe. Devorou um filezão de peixe. Deixou o macarrão e a batata frita de lado e partiu pro ômega 3. Por isso, digo que ganhei o dia!

Pra fazer Totônio comer, às vezes é preciso inventar moda. Apelar pra criatividade. Quando faço ovos mexidos, pego as forminhas de massinha dele para moldar os pedacinhos. Sai formato de nuvem, de círculo, de estrela. O duro é que não encontrei mais essas forminhas e ontem fiz um coração à mão livre. Mas Totônio não quis comer o meu coração. Na verdade ele nem partiu o coração. Então, só meu restou almoçá-lo hoje junto com o arroz e feijão que ele também dispensou na janta da noite anterior. 

Agora eu entendo perfeitamente o que meu pai fazia quando eu era pequena. Comia tudo o que estava vencido na geladeira, as sobras. Hoje eu faço isso com Totônio. Venceu o petit suisse? Então, bora comer. Mesmo sem vontade. Isso é ser mãe. Isso é não desperdiçar.

O segundo gesto que me fez ganhar o dia vale por mil. De repente, Totônio me puxa pela mão e diz:

_Mamãe, hoje eu vou dormir com você! 

Fez um high five e me levou pro quarto.

Totônio quase nunca dormiu na minha cama. Nos dois primeiros meses de vida,  era no meu colo e no colo da vovó que ele adormecia. E eu? Dormir pra quê?

Depois foi pro berço e pra caminha. Só que ele tem o hábito nada agradável de pegar no sono no sofá da sala. Eu costumo deitar pra um lado e ele pro outro. Quando ele chega no estágio do sono, digamos, mais profundo, eu o carrego para o quarto. Toda santa noite é assim. Minhas costas ainda sobrevivem.

Só que tem dias que eu capoto de sono, de tão cansada, e só acordo duas horas depois pra levá-lo pro quarto. Por isso hoje me surpreendi com o comportamento dele! Talvez tenha percebido meu cansaço misturado com um pouco de carência, e resolveu dormir na cama da mamãe. Agora meu peixinho está aqui do me lado, com seu edredom branco que ele não desgruda e o travesseiro que eu usava quando criança. Bons sonhos, Totônio! Sonhe com um belo passeio no parque! Sonhe em abraçar a vovó e o vovô! Sonhe com o futuro!

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Um acidente a caminho da escola

De carro ou a pé? – perguntei ao Totônio.

_ Pelo caminho, por aqui – respondeu o menininho cabeludo. Dois anos ele tem, e agora entra na escola no meio da manhã (pra ver se come melhor, sabe). Estamos atrasados e está prestes a chover. Por mim, colocaria Totônio na cadeirinha do carro e vrummmm. Mas não, o garotinho prefere ver as abelhinhas, as borboletas, o cachorro Jango. Prefere constatar que recolheram os galhos cortados que haviam sido deixados no meio da calçada.

Hoje, porém, estava incrivelmente chovendo. Chuva fina, mas pelo céu escuro, o toró cairia a qualquer instante. _ Vamos colocar o capuz, Totônio.

Peguei o guarda-chuva no carro e fomos nós, empurrando a mala de rodinhas de super-herói. _ Ih, mamãe, não, tem abelhinha…, resmungou Totônio. _ Elas não trabalham na chuva, xuxu.

Quando saímos do prédio, a chuva parou. Vamos tirar esse capuz e dar bom dia para as pessoas. Quem sabe encontramos alguma borboleta.

Ao virar a esquina da rua onde fica a escola, o cenário estava diferente, meio conturbado. Calor. Tiramos o agasalho. O guarda-chuva pendurado na mala. Totônio insiste em se desvencilhar da minha mão. Ele se solta pra correr atrás de um joão-de-barro. A mulher do passarinho está rente ao asfalto. Adiante, uma borboleta. Totônio quer sair atrás dela também. Pego firme na mão do meu filho. Explico a ele pela enésima vez que os carros descem a rua muito rápido e podem “passar por cima” do Totônio. Ele aceita e continuamos o trajeto.

_  Vixi, estão cortando a grama da casa do Jango. O cão está guardado, os portões abertos. Temos que desviar. Do outro lado da rua, lavam a calçada em frente ao casarão. Pego o menininho no colo, na marra, junto com a mala, guarda-chuva e agasalho para atravessar naquele trecho. Retornamos ao nosso caminho e nos deparamos com uma van estacionada ali, na calçada. Mais alguns passos e a quadra acabou. Totônio não quer colo. Quer atravessar sozinho. _ Só quando a mamãe disser já, ok?

Ufa, conseguimos!!! Só mais uma subidinha e chegamos à escola. Totônio dá tchau e entra contente. Eu saio de lá e noto que o zelador olha em direção à esquina de cima. E, realmente, percebo um grupo reunido e….um carro capotado. _ Parece que a criança estava na cadeirinha, disse o zelador.

Apesar de evitar ler/ver qualquer relato sobre tragédia desde que Totônio nasceu, precisava saber se estava tudo bem. Você pode largar a profissão, mas a notícia insiste em te perseguir.

Quando olhei para o carro, fiquei paralisada com os brinquedos caídos no asfalto: o trator, o bichinho de pelúcia. Quase chorei. Essa cena me lembrava tantas outras que tive de presenciar quando trabalhava no jornal.

Ao meu lado, um pai, em choque: olhos claros, arregalados, desesperados, segurando no colo o filho de chupeta. E uma mulher, com a mochilinha da criança de uns 4 anos de idade no braço; provavelmente a mãe. Todos usavam cinto de segurança no momento do acidente.

Pergunto se eles precisam de ajuda. _ Está tudo bem. Ninguém se machucou. Também vim aqui ajudar, disse uma moça que estava ao celular e conversando com testemunhas.

Então, percebo um carro, um Subaru vermelho, antigo. E acho que entendi tudo. Provavelmente cruzou a preferencial, como seeeempre acontece aqui no bairro. O pai, vinha descendo a rua, e deve ter jogado o carro no meio-fio e capotado. Como notou um cortador de grama, não deu tempo nem de ele frear: _ Olha, não tem marcas no chão, apontou para o asfalto.

Os pais e a criança foram gentilmente recolhidos a uma clínica médica que fica bem na esquina do acidente. O menino estava apavorado, mas não chorava.

Contei o que tinha acontecido para o zelador que não podia sair de frente da escola. E voltei pra casa, debaixo de chuva forte e aliviada, por chegar a um local de acidente e simplesmente oferecer ajuda e não ser mais obrigada a escrever sobre isso.

 

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Carro capotado. Menino estava na cadeirinha.