Um raio apagou a vida de J.F.W.

Minhas idas rotineiras ao Instituto Médico-Legal, o IML, costumam ser bastante dolorosas. Por mais habituada que esteja, respiro fundo toda vez que saio do carro da reportagem antes de entrar pelo portão da “pousada” dos mortos. Desde que o órgão sofreu a intervenção da Polícia Militar (o que deve terminar até a semana que vem com a mudança de governo) somos proibidos de estacionar a “viatura” do jornal em suas dependências.

Vários passos e alguns acenos de “bom dia” depois, chego ao balcão do plantão. São raras as vezes em que não sou bem atendida. Mas entenderia a acidez do tratamento à imprensa sobretudo diante da áurea de tristeza que paira sobre a sala e se mistura ao cheiro forte de corpos putrefeitos durante os dias de calor. Me sinto às vezes como uma intrusa, uma bisbilhoteira diante de famílias que sofrem a perda de entes queridos e aguardam horas para serem atendidas ali. 

O plantonista imprime a lista com o nome dos mortos – o chamado relatório SML que cadastra as vítimas de morte violenta (acidente de trânsito, homicídio, afogamento, suicídio). Enquanto isso, uma família aguarda para liberar o corpo de um rapaz. Antes de ler o nome do administrador de empresas J.F.W., 28 anos, naquela lista, ouvi o lamento de uma parente dele, revoltada com a morte estúpida. J. sofreu uma descarga elétrica enquanto cortava a grama no quintal, bem ao lado da piscina da casa onde morava em Matinhos, no litoral do Paraná.

Chovia bastante. Um raio apagou sua vida. “Eu vivia dizendo pra ele não cortar a grama daquele jeito. Não usar aquela máquina. Ele devia estar descalço. Mas nesse caso nem chinelos adiantariam”, lamentava a mulher, provavelmente irmã, que tinha o RG de J. nas mãos.

A mãe dele estava aos prantos. De preto, óculos escuros, sentada numa das cadeiras do saguão. Imaginei minha mãe sentada ali. Dor. 

O marido, um senhor de cabelos brancos, alto, de aparência saudável, diz pra mim. “Você não tem ideia de como é perder um filho assim. Tão jovem. Ele tinha um cargo bom na universidade, lá no litoral. Por isso morava lá. Era administrador de empresas”.

Simplesmente, não sabia o que responder e emendei um lugar comum. “Não posso imaginar o que o senhor está sofrendo. Deus sabe o que faz”, disse. Nunca sei o que falar numa situação dessas, apesar de serem rotineiras. Boa parte das vezes, eu prefiro ficar quieta, respeitando a dor da família. Transmiti meus sentimentos ao senhor e saí do IML, mais uma vez, respirando fundo e me segurando pra não chorar.  

Foto por Johannes Plenio em Pexels.com

*Texto escrito em 15/02/2011 durante o período em que trabalhei como repórter policial. Seria publicado num blog criado e esquecido por mim.

3 comentários em “Um raio apagou a vida de J.F.W.

  1. Nossa, que situação dantesca.
    Deve ser muito difícil ser profissional nesses momentos, afinal, antes de sermos profissionais, somos humanos.
    É surreal.

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