Sou Chico desde a infância

Preciso escrever sobre o Chico antes que detalhes daquele show histórico no Teatro Guaíra se apaguem da minha memória.

Conheço Francisco Buarque de Hollanda desde a minha infância. Primeiro, se não me engano, por uma fitinha cassete que meus pais ouviam na Brasília amarela, e depois no Voyage cinza (que os ladrões furtaram para cometer um assalto e foi recuperado pela pol polícia) e depois no Santana preto. Tenho essa fita até hoje, que por pouco não foi totalmente vandalizada por Totônio. Quando tinha um aninho, o piazinho insistia em abrir aquela caixinha de acrílico, tirar a capinha e coloca-la novamente. Até que um dia, claro, ele rasgou parte do encarte com as letras da música de “Meus Caros Amigos” (1976).

E não é que dia desses, vasculhando no Spotify, encontrei essa canção na voz de Adriana “Partimpim” Calcanhoto. Coloquei pro Totônio ouvir. “Bico calado, muito cuidado, que o homem vem aí, o homem vem aí”. Passaredo foi, na verdade, composta para o filme “A noiva da cidade”, de Alex Viany, de 1978.

No livro , “Chico Buarque, Letra e Música”, de 1989, o autor Humberto Werneck lembra que Chico revelou num programa de televisão que não entendia absolutamente nada de bicho e procurou o nome dos pássaros na enciclopédia. E, para espanto geral, ainda disse: “eu detesto bicho” (a frase se dita hoje certamente teria mais impacto). No livro, Werneck ainda escreve que as aves curiosamente arrumaram um jeito de se vingar de Chico. Um dia, um passarinho displicente, como se soubesse da ofensa do compositor, deu um voo rasante e fez cocô na cabeça dele.

Chico Curumim
Livro da coleção Taba com a música Passaredo.

Se eu rebobinar a memória até os anos 90, surgem os livros escolares, de língua portuguesa, literatura. Lembro como se fosse ontem da letra genial “Construção”, de 1971, do disco de mesmo nome, estampada numa das páginas do meu livro de literatura. Numa rápida pesquisa pelo Google, você vai encontrar “n” blogs tecendo comentários sobre a canção composta num dos períodos mais tensos da ditadura e construída perfeitamente com versos alexandrinos (de 12 sílabas) e as 17 proparoxítonas, que se alternam.

No site do compositor, (www.chicobuarque.com) consta uma entrevista dele à Judith Patarra publicada na revista Status de 1973. Chico examina sua obra-prima e afirma que não foi sua intenção retratar o problema dos operários: “Em Construção, a emoção estava no jogo de palavras (todas proparoxítonas). Agora, se você coloca um ser humano dentro de um jogo de palavras, como se fosse… um tijolo – acaba mexendo com a emoção das pessoas”.

De fato, comecei a me interessar pela obra do Chico na minha adolescência e depois na faculdade. Lembro que percorria muitos sebos de Curitiba a caça dos vinis antigos. Chegava em casa e botava pra tocar na extinta vitrola Gradiente. E ficava cantando e dançando e descobrindo o que estava por trás das letras, dos sonetos, dos versos dos poemas. As figuras femininas em primeira pessoa, os dribles na censura…”apesar de você/ amanhã há de ser outro dia”. Ele cantava pros generais e eu pro meu ex-namorado.

O possante azul de Totônio

Sol, 16 graus, e decidimos sair no meio da manhã para o tour pelos parquinhos da região. Já na porta do apê, Totônio pede colo para descer as escadas. São três lances e eu até entendo sua ansiedade em chegar mais rápido à garagem agarrado na sua mãe. O pai tenta segurá-lo. Mas não, quando a mãe está junto, é sempre o colo dela que ele quer.

Totônio tem um possante azul que fica guardado no porta-malas do carro. Os botões da direção já não funcionam há mais de ano. Eu, quando vejo o carrinho de plástico sempre repito: _ A mamãe promete que leva para consertar na assistência NESTA semana. Não adianta, eu sempre esqueço. Mas Totônio finge que não está nem aí e dirige numa boa. Ou melhor, nós dirigimos. O pai sai correndo atrás da mamãe.  E Totônio gosta da brincadeira. _Mais rápido, mais rápido, pede o piá. Eu não aguento mais correr. Apesar que faria bem, esquentaria o corpo. Porque o vento gelado faz a sensação térmica parecer 10 graus. Totônio está de capuz. Sempre coloco o capuz. Sempre. Eu sei que pode parecer exagero. É mais prevenção que exagero.

O “smart” costuma chamar a atenção dos pedestres. As velhinhas adoram. _Tão pequenininho e já dirigindo. Acho que vai ser piloto de Fórmula 1!, exlcama uma antiga moradora.

Seguimos em linha reta e, a uma quadra da via terminar, viramos à esquerda em direção à ciclovia. Totônio está tranquilo, curte o passeio. Até chegarmos ao primeiro parquinho do roteiro. Ele pede para descer e corre até o imenso escorregador. Vai duas vezes. Brinca por alguns segundos em todas as gangorras e já está pronto para ir embora. Mas prefere continuar a pé pela ciclovia.

No caminho, alguns bons-dias para aqueles que se exercitam. E vamos desviando das bicicletas e reparando nas árvores que beiram os trilhos do trem. Muitas amoreiras, carregadas. Logo, logo, seus frutos estarão madurinhos para os passarinhos consumirem antes de nós. Boa parte das mudas são plantadas por um morador da região chamado Napoleão. Ele conhece o pai do Totônio. Os dois jogavam tênis numa academia ali perto.

_Bom dia! Não aparece mais lá??, pergunta surpreso.

_Pois é! Não dá mais tempo… , responde o pai.

_Outras, outras…, titubeia Napoleão.

(outras quais??????)

_Outras prioridades!!, completa o pai do Totônio.

(ahhh bom)

Nos despedimos e seguimos a rota, até que bem próximo da pracinha da “Barra da Tijuca” (um conjunto de prédios tão bonitos, mas tão bonitos, que nos faz remeter ao bairro carioca, o qual não conhecia até poucos meses atrás. Agora, eu entendo por que), a criança de 13 quilos me pede colo. E só serve o meu. Você pode se perguntar que 13 quilos para um piá de quase 3 anos é pouco. Mas olhe para mim: 1,58; 51 quilos. Não consigo mais carregá-lo sem comprometer minha lombar.

Totônio brinca na pracinha quase vazia. Um menino simpático de uns 10 anos se balança e logo dá tchau para o amiguinho mais novo.

_Totô, vamos embora que está muito frio!!!

Ok. Ele concorda, mas não quer saber de seu carro usado. Prefere o colo da mamãe. Sinto que falta combustível para esse menininho que só aceitou a mamadeira pela manhã. Tento transferi-lo para o colo do pai. E então começa um show de berros e lágrimas em plena “Barra da Tijuca” curitibana. E sou repreendida: _Você não pode fazer tudo o que ele quer. Ele precisa entender isso!!!!!

Na verdade, não consigo ouvi-lo chorando e cato o guri de novo no colo. Explico pra ele que está muito pesado e a mamãe não consegue mais carrega-lo. Meus braços, para se ter uma ideia, estão desiguais. Me acostumei a carregar o piá do lado direito. Encaixá-lo na cintura. Por isso, o meu soco de direita é mais poderoso.  E na hora que eu aceno, as pelancas do esquerdo são mais visíveis.

Enfim, transporto o menino aparentemente sem energia pelo colo até nossa casa. Com direito a várias paradas para tentar fazê-lo andar, que de nada adiantaram. E o pior está por vir: três lances de escada acima. Minha lombar grita, mas penso eu que daqui a alguns anos será realmente impossível carregá-lo. Então, eu aproveito essa dor e o sol. Porque no dia seguinte, os 16 graus viraram 12 ou 10. Brrrrrrrrrrrrr

Um acidente a caminho da escola

De carro ou a pé? – perguntei ao Totônio.

_ Pelo caminho, por aqui – respondeu o menininho cabeludo. Dois anos ele tem, e agora entra na escola no meio da manhã (pra ver se come melhor, sabe). Estamos atrasados e está prestes a chover. Por mim, colocaria Totônio na cadeirinha do carro e vrummmm. Mas não, o garotinho prefere ver as abelhinhas, as borboletas, o cachorro Jango. Prefere constatar que recolheram os galhos cortados que haviam sido deixados no meio da calçada.

Hoje, porém, estava incrivelmente chovendo. Chuva fina, mas pelo céu escuro, o toró cairia a qualquer instante. _ Vamos colocar o capuz, Totônio.

Peguei o guarda-chuva no carro e fomos nós, empurrando a mala de rodinhas de super-herói. _ Ih, mamãe, não, tem abelhinha…, resmungou Totônio. _ Elas não trabalham na chuva, xuxu.

Quando saímos do prédio, a chuva parou. Vamos tirar esse capuz e dar bom dia para as pessoas. Quem sabe encontramos alguma borboleta.

Ao virar a esquina da rua onde fica a escola, o cenário estava diferente, meio conturbado. Calor. Tiramos o agasalho. O guarda-chuva pendurado na mala. Totônio insiste em se desvencilhar da minha mão. Ele se solta pra correr atrás de um joão-de-barro. A mulher do passarinho está rente ao asfalto. Adiante, uma borboleta. Totônio quer sair atrás dela também. Pego firme na mão do meu filho. Explico a ele pela enésima vez que os carros descem a rua muito rápido e podem “passar por cima” do Totônio. Ele aceita e continuamos o trajeto.

_  Vixi, estão cortando a grama da casa do Jango. O cão está guardado, os portões abertos. Temos que desviar. Do outro lado da rua, lavam a calçada em frente ao casarão. Pego o menininho no colo, na marra, junto com a mala, guarda-chuva e agasalho para atravessar naquele trecho. Retornamos ao nosso caminho e nos deparamos com uma van estacionada ali, na calçada. Mais alguns passos e a quadra acabou. Totônio não quer colo. Quer atravessar sozinho. _ Só quando a mamãe disser já, ok?

Ufa, conseguimos!!! Só mais uma subidinha e chegamos à escola. Totônio dá tchau e entra contente. Eu saio de lá e noto que o zelador olha em direção à esquina de cima. E, realmente, percebo um grupo reunido e….um carro capotado. _ Parece que a criança estava na cadeirinha, disse o zelador.

Apesar de evitar ler/ver qualquer relato sobre tragédia desde que Totônio nasceu, precisava saber se estava tudo bem. Você pode largar a profissão, mas a notícia insiste em te perseguir.

Quando olhei para o carro, fiquei paralisada com os brinquedos caídos no asfalto: o trator, o bichinho de pelúcia. Quase chorei. Essa cena me lembrava tantas outras que tive de presenciar quando trabalhava no jornal.

Ao meu lado, um pai, em choque: olhos claros, arregalados, desesperados, segurando no colo o filho de chupeta. E uma mulher, com a mochilinha da criança de uns 4 anos de idade no braço; provavelmente a mãe. Todos usavam cinto de segurança no momento do acidente.

Pergunto se eles precisam de ajuda. _ Está tudo bem. Ninguém se machucou. Também vim aqui ajudar, disse uma moça que estava ao celular e conversando com testemunhas.

Então, percebo um carro, um Subaru vermelho, antigo. E acho que entendi tudo. Provavelmente cruzou a preferencial, como seeeempre acontece aqui no bairro. O pai, vinha descendo a rua, e deve ter jogado o carro no meio-fio e capotado. Como notou um cortador de grama, não deu tempo nem de ele frear: _ Olha, não tem marcas no chão, apontou para o asfalto.

Os pais e a criança foram gentilmente recolhidos a uma clínica médica que fica bem na esquina do acidente. O menino estava apavorado, mas não chorava.

Contei o que tinha acontecido para o zelador que não podia sair de frente da escola. E voltei pra casa, debaixo de chuva forte e aliviada, por chegar a um local de acidente e simplesmente oferecer ajuda e não ser mais obrigada a escrever sobre isso.

 

acidente
Carro capotado. Menino estava na cadeirinha.