O Zé de todo mundo*

Em 1999, o ex-maldito re-nascia para a juventude universitária ao pisar no palco do festival Abril Pro Rock, em Recife. Ano passado, no mesmo festival, saiu do show direto para o hospital com princípio de infarto.

Um fim de semana de abril de 2003. Abril Pro Rock em sua 11º edição e o baiano de Irará no palco da Sociedade Vasco da Gama, mais conhecido como o palco do Forró Calamengau, em Curitiba, apresentando seu mais novo manifesto: “Companheiro Bush”, título do CD a ser lançado pela Trama. A canção foi especialmente dedicada ao presidente dos Estados Unidos, em quem provavelmente deve faltar um parafuso, segundo Tom Zé, com seus quase 67 anos, dono de uma das poucas mentes lúcidas da música popular brasileira.

O show começa com vaias.

Vaias à introdução com o hino dos EUA. A platéia seleta formada por músicos, atores, artistas plásticos, jornalistas, professores e muitos, muitos universitáios era convocada a repetir, uma, duas, três, quatro… quantas vezes fosse preciso: “Se você já sabe/ quem vendeu/ aquela bomba pro Iraque/desembuche/ Eu desconfio que foi o Bush/Foi o Bush/Foi o Bush”.

O protesto contra o presidente rendeu versão em inglês de Christopher Dunn, professor da Universidade de New Orleans, e foi incluída na seleção musical da Protest-Records, gravadora virtual fundada por Thurston Moore, guitarrista da banda nova-iorquina Sonic Youth, em parceria com o designer Chris Habib.

É protesto sim. É protesto, é opinião, irônica, engajada. Tom Zé acumula funções: poeta, político, jornalista, sobretudo artista, com um diferencial primordial: a inexistência do ego inflado que a maioria dos artistas exalta.

Hipocrisia parece não ser verbete de seu dicionário prático de vivência. Simples no nome, prático no palco (“não, vamos começar essa música de novo”).

Rápido e imediato num discurso complexamente construído com cri-atividade no uso de suas figuras de linguagem e sonoridade musical inclassificável. Le Monde, Le Nouvel Observateur, L´Express, Le Vif, todos os Les saúdam as ideias de Tom Zé.

Um dia antes do show, o Zé dizia numa estação de rádio que ele como músico é muito sensível aos fatos do mundo, portanto não pode ficar calado. Dessa forma justifica que não é música de protesto o que faz, mas simplesmente o retrato do mundo que o circunda.

Mas Tom Zé… cantar “Meta sua grandeza/No Banco da esquina/Vá tomar no Verbo/Seu filho da letra”, em “Politicar” (o defeito número três do disco “Com Defeito de Fabricação”) é um baita de um protesto metafórico… nem tão metafórico assim, ele pede para a plateia exorcizar em uníssono vários “puta que pariu”, até que cada um atingisse o grau mais profundo de revolta interior.

Em frente ao cantor, muitos sabiam de cor suas canções, do disco “Jogos de armar – faça você mesmo”, lançado pela Trama em 2000, e do “Com defeito de fabricação”, de 1999. Outros estavam ali por curiosidade.

Havia os mais exaltados que urravam nos ouvidos do vizinho de plateia como se quisessem mostrar: “olha aqui, eu sei cantar”. Além daqueles que pensavam (pode ter certeza): bom seria se o Tom Zé fosse o meu avô e aprender com ele política crítica com uma didática muito mais atrativa e eficiente do que a aplicada nos ambientes acadêmicos. Isso com o auxílio de uma participativa banda de operários da música, vestindo cada um seu macacão: Cristina Carneiro, Sérgio Caetano, Marco Prado, Jarbas Mariz, Lauro Lélis e Gilberto Assis que embalaram logo de início “2001”, de Tom Zé e Rita Lee, gravada pelos Mutantes.

A passeata contra o imperialismo americano seguia: o músico pede para o Jimi Hendrix se render numa maracapoeira (“Bob Dica, diga/Jimi renda-se! /Cai cigano, cai, camóni bói/Jarrangil century fox/Galve me a cigarrete/Billy Halley Roleiflex”) e comenta: “vocês viram como eu consegui juntar vários cantores numa só música!”. Diz que logo o Brasil vai ficar rico quando o diabo do petróleo acabar: “O dólar é moeda falsa/O americano já não segura as calças/A Alemanha quase pedindo esmola/A inglesa não usa mais calçola”. E define a ONU como marca mortal numa parceria de deixar o pai do André Abujamra com orgulho.

Brincalhão, seu cinto vira gravata, e a gravata enrijece. Então ele simula como as brasileiras chegam ao tal do clímax e a banda toda em “Passagem de som”, um chamegá-exaltação, segundo ele: “Ai! Joãojacksonjoãogonzagá/ Gonzá Gonzá/ Ai ai Gonzá Gonzá/Ai Gonzá ai Gonzá … …  Gonzá Gonzá Gonzá/ Ó ó ó ó ó”.

Hahaha

No bis, aquela que faltava: “Made in Brazil”, de uma época tropicalista. Caetano Veloso diz que a Tropicália é de Tom Zé.

“São São Paulo” não estava no set list, mas a homenagem à cidade (que é também esculhambada na música) surge com o “Trem das Onze” e a lembrança de Adoniran e Demônios da Garoa. No fim, repetia entusiasmado: É Curitiba, É Curitiba. É…mas ninguém deu bola pra homenagem.

Diante daquilo que poderia se concretizar como uma verdadeira demonstração de nacionalismo (exacerbado?) e todo seu discurso sócio-político-filosófico, Tom Zé deixou escapar um detalhe: o que era aquela calça da Nike? Bonito, hein? E o boicote? Tudo bem…não vamos levar tão a sério assim. Tom Zé pode agora descansar em paz com sua juventude.

 

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*Texto publicado originalmente no Central da Música em 29/04/2003

 

O amor, o Roberto e a flor*

O show estava previsto para as sete da noite, mas se majestade é brasileira, não há motivos para respeitar o horário britânico, nem seus súditos. Atrás das grades, numa fila do gargarejo estavam senhoras, boa parte mães de família, e crianças que chegaram ao parque Barigui, em Curitiba, às duas da tarde. Aflitas e cansadas, gritavam exaustivamente o nome do Rei, segurando capas de discos, cartazes, até que a indignação suscita um alto coro de vaias. Surge, enfim, a banda e o Rei: Roberto Carlos sobe ao gigantesco palco importado da Alemanha, uma hora e meia atrasado.

O megaespetáculo foi o presente que a Prefeitura de Curitiba e o Grupo Pão e Açúcar ofertaram aos moradores no aniversário de 310 anos da cidade, ocasião escolhida para abrir a temporada musical do Projeto Pão Music para um público órfão de shows ao ar livre na capital paranaense. Foram gastos, no total, mais de 700 mil reais (só o cachê do Rei por volta dos 350 mil). O prefeito Cássio Taniguchi avisa: “Estamos preparando mais shows como esse”, porém, antes, deixa a entender que a prioridade é educação, saúde…. “Acabei de inaugurar duas creches semana passada e ninguém fala….”…Ah…OK  Sr. Prefeito. Vou ouvir o que o presidente da Fundação Cultural, Cássio Chamecki, tem a dizer. “O Pão Music queria fazer uma ação em Curitiba. Como o Roberto já havia tocado em outras ocasiões no projeto do Pão de Açúcar, houve uma conjunção positiva”.

Conjunção positiva às 20h25 do dia 29 de março, uma noite estrelada, pequenas nuvens no céu. Petiscos e refrigerantes de lado, as atenções se voltam para o rei, com um semblante cansado, abatido. Todo de branco: roupa, cabelos, pele…

Rei: “Quando eu estou aqui/ eu vivo esse momento lindo”.

Pará parará pará parará.

Ou seria um pastor? Anda até trocando o maniqueísmo da letra: “Se o bem e o bem existem você pode escolher/ É preciso saber viver”.

Todo mundo:

“Essa luz, só pode ser Jesus”.

Roxas, azuis, laranjas. O espetáculo de cores energiza e deixa a platéia ainda mais atenta: “Quanto pancake que ele usou, você viu fulana?”, diz uma fã para outra. Para fazer um comentário como esse, as duas só poderiam estar na verdadeira fila do gargarejo, ou seja, a dos convidados. Sentadinhos na frente do palco, os sortudos funcionários da rede de supermercado e da prefeitura, políticos, apresentadores de tevê…espera….o que o Tuba está fazendo aqui?

– Ah, você acha que eu iria perder um show do Roberto Carlos? Pô, a gente também canta músicas dele.

A gente quer dizer os Faichecleres, a banda de rock’n’roll do Tuba.

– A gurizada tá toda lá no meio. Só eu que consegui ficar aqui! – explica Tuba tri entusiasmado.

– Mas, bicho, você não trabalha no Pão de Açúcar, nem na prefeitura e ainda não virou apresentador da MTV, então: como conseguiu esse crachazinho? …..hahaha….entendi…. me diz ainda: você vai dar aqueles gritos fenomenais pro Roberto?

– Vou…vou ficar gritando o show inteiro…

Tuba pode ter ensaiado alguns gritos, mas ele parecia muito emocionado diante da figura do Rei.

O sucesso “Todos estão surdos ficou de fora”, do disco de 1971 (que tem “Detalhes” e “Debaixo dos Caracóis”), e que recebeu versão de Chico Science (também… sem os gritos do Tuba), como as “Curvas da Estrada de Santos”. Restou “Parei na contramão” pra relembrar os anos 60.

Chacon Júnior, o sósia do Roberto Carlos, era outro convidado que só não acertou na cor da camisa, azul. Numa breve, porém franca conversa pouco antes do início do show, o radialista de 62 anos contou que Roberto Carlos vem perdendo esse tipo de superstição. Chacon acompanha o Rei desde “a época da tevê em preto e branco”, vai aonde RC se apresenta e consegue manter uma conversa com ele nas suas visitas aos hotéis onde o astro se hospeda.

– O Roberto Carlos te recebe bem?

– Sim. Ele é muito simpático. O Roberto está muito religioso. Quem tem Deus no coração, aos poucos vai consertando os erros – disse Chacon.

E por falar em erros, depois de algumas músicas conhecidas, a maiorida delas do último CD Roberto Carlos e do Acústico, o rei canta uma recente parceria, um quase rap com Erasmo Carlos. No prefácio da canção “Seres Humanos”, que não estava presente no roteiro, o rei prega: “eu sempre ouvi que o ser humano é frágil. Mas hoje eu penso diferente. O ser humano não é terrível, é maravilhoso. Se a gente não tivesse inventado o avião, pra chegar de Curitiba ao Rio de Janeiro levaria duas semanas” (será que foi isso o que eu ouvi?). Menos, Roberto. Menos. Menos o Hitler, o Bush….

E continuou falando sobre os benefícios do gás de cozinha, combustíveis, ou seja, hoje o mundo é bem melhor do que tempos atrás.

“Que negócio é esse de que somos culpados
De tudo que há de errado sobre a face da terra
Que negócio é esse de que nós não temos
Os devidos cuidados com o mundo em que vivemos
Fazemos quase tudo por necessidade
Vivemos em busca da felicidade

Somos Seres Humanos
Só queremos a vida mais linda
Não somos perfeitos
Ainda”

Bom, se não somos – seres humanos – culpados, gostaria de saber quem é. E o rei-pastor-professor-artista da Globo segue propagando o amor aos seus súditos (ou ovelhinhas?). 100 mil pessoas previstas. 45 mil presentes, segundo um policial. 80 mil pessoas de acordo com outro. No final, 110 mil. Gente suficiente pra cantar junto com ele: eu te amo, eu te amo, eu te amo. E responder histericamente: eu também, eu também. Arranhando o violão na melosa “Detalhes”: “Imediatamente você vai lembrar de mim de mim”….e o público: toda hora, toda hora. Um espectador estende o celular pro alto, dedicando a música pra alguém querido. Eu te amo tanto. “Esta música foi a mais forte que eu já fiz em toda a minha vida”, diz Roberto se dirigindo ao piano. No telão de fundo, surge a foto do casal e duas estrelinhas uma do lado da outra. “Esse show foi dedicado à Maria Rita”. Aplausos, aplausos. Roberto explica a diferença entre paixão-amor: o amor é a união de duas almas, não de dois corpos. Por isso é eterno. Mas apesar de todo seu sofrimento, ele continua: é a “Força Estranha” que leva a cantar.

E no final, uma integração pela paz, comoção e correria pra ganhar a flor do Roberto. Jesus Cristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui…e como eu também sou filha de Deus, uma flor vermelha caiu na minha mão. Infelizmente, as rosas não são para as fãs cansadas na multidão.

E assim Roberto Carlos deixa o palco: nenhum discurso sobre guerra, aqueles mesmos gestos, aquela mesma batida no peito, aquele mesmo dedo apontado pro céu, aquele mesmo “obrigado”. Só faltou uma nave espacial azul pairar sobre o palco alemão.

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Adivinha de quem é aquela mão? (Foto de Ricardo Almeida/SMCS)

* Texto publicado na coluna Outro Olhar do portal Central da Música em 6/4/2003. A flor, ou o que sobrou dela, ainda está guardada.

Torquato Neto por uma melancólica*

“Existirmos – a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos, intacta retina:
A cajuína cristalina em Teresina”
 
Caetano Veloso compôs Cajuína ao visitar um pobre pai que perdera seu filho, menino infeliz de Teresina.
 
Nascido no dia 8 de novembro 1944, o mesmo menino apareceria em 1968 ao lado de toda a turma tropicalista na capa do disco-manifesto “Panis et Circenses”.
 
Poeta. Irrequieto. O afetuoso jovem transitava da música para o jornalismo, do jornalismo para o cinema.
 
Em “Mamãe, coragem”, o menino pedia para que a mãe se consolasse com a mudança do filho para Salvador, aos 17 anos, onde estudou Filosofia.
 
“Mamãe, mamãe não chore
A vida é assim mesmo eu fui embora
Mamãe, mamãe não chore
Eu nunca mais vou voltar por aí”
Com Gil, fez “Geléia Geral”, canção que levava o mesmo nome da sua coluna no revolucionário jornal do senhor Samuel Wainer, o Última Hora, onde o menino assumia sua o-posição ao cinema novo, à bossa-nova. A mesma Geléia Geral anunciada pelo Jornal do Brasil.
 
“Ê, bumba-yê-yê-boi
ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
é a mesma dança, meu boi
Ê, bumba-yê-yê-boi
ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
é a mesma dança, meu boi”
A mesma dança. Basta.
 
Aos 28 anos, antes ou depois do romper de hoje, dia 10 de novembro de 1972, o neto do seu Torquato, amigo do Oiticica (o “reponsável” pelo termo “Tropicália”), dos concretos, dos poetas marginais, dá seu próprio golpe. Depois do AI5, da viagem à Europa, da viagem aos Estados Unidos, do afastamento físico dos tropicalistas, de ser vampiro no filme Nosferato Brasileiro, fica a eternidade da sua falta.
 
Chega da festa. Sua mulher Ana vai dormir – é o que contam. Tranca-se no banheiro. Janela Fechada.
 
Gás,
 
Escreve:
“Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego…”.
 
Gás, Gás, Gás,
…De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar…
Gás, Gás, Gás, Gás, Gás,
…Pra mim chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar…
Gás, Gás, Gás, Gás, Gás, Gás, Gás
 
————————————————————
 
30 anos depois. Thiago, que tinha três anos quando o pai morreu, é piloto de avião. Talvez, ele ainda vá descobrir algo a mais sobre o pai na biografia a ser lançada no início do ano que vem, 2003, em louvação à perda de Torquato. Talvez o poeta não seja “tudo isso” como disse um jornalista. Talvez. No entanto, ele teve a coragem, aos 23 anos, de criticar, por exemplo, um disco DO cantor Ataulfo Alves, pelo fato de conhecer todos os outros discos e dessa forma poder encher a boca pra dizer “isso é uma porcaria”. Talvez ele não seja “isso” mesmo, mas outro tipo de pronome:
 
“Eu sou como sou
Pronome pessoal
Intransferível
Do homem que iniciei
Na medida do impossível
Eu sou como sou
Vidente
E vivo tranqüilamente
Todas as horas do fim”
 
Coragem ele teve para se matar, abandonar a família, o filho, seus textos. Coragem para se matar ou falta de ambição pela vida?
 
Tempos opressivos aqueles: só quem viveu para contar.
 
“Pra mim chega!”
 
Fraco? Covarde ou sensível? Ele chegou a voltar a Teresina algumas vezes para se auto-internar em clínica psiquiátrica. Loucura… talvez não. As crises de choro eram constantes. Provável diagnóstico… depressão.
 
Tempos depressivos os de hoje. Só quem está no túnel para opinar.
 
Por isso prefiro e preciso pensar no que Torquato escreveu e o titã Sérgio Brito musicou, em 88:
 
“Só quero saber do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder”.
 
Porque ligar o gás é mais fácil do que sentar na frente do computador e escrever…
 
…ufa…abri a janela…
 
 
Ar, Ar, Ar, Ar, Ar, Ar
 
 
 

*Texto publicado originalmente na coluna Outro Olhar do Central da Música em 11/11/2002.

 
 

 

 

Autobiografia de leitora

Minha memória mais antiga de leitora vem do berço. Eu, deitada, quase dormindo, e minha mãe acomodada numa poltrona, sob a luz de um abajur, forçando os olhos para ler a coleção inteirinha de Monteiro Lobato, que guardo até hoje.

Os 15 volumes estão expostos na estante do meu apartamento juntamente com outros livros e coletâneas que meus pais adquiriam via Círculo do Livro, um clube de livros dos anos 80 e que foi a grande base introdutória de leitura pra muita gente da minha geração.

A cada noite, mamãe pegava um dos volumes da coleção com as personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo e lia um trecho pra mim. Começou pela letra M, com as Reinações de Narizinho, e terminou no O, com a continuação dos trabalhos de Hércules e histórias diversas.

Hoje, revisitando o passado e admirando essa coleção maravilhosa, surge um quê de decepção ao me dar conta que sou incapaz de me recordar de boa parte do conteúdo das histórias. Talvez sofra de déficit de atenção. Lembro sim das personagens, da Emília toda tagarela (depois ganhei umas bonequinhas de pano da Estrela), da Dona Benta, da Tia Nastácia, do Saci-Pererê, do Visconde de Sabugosa etc etc.. Registrada na memória ficou minha mãe, lendo pra mim. E quando eu adormecia, ela certamente se enriquecia com aquelas histórias que não havia lido quando ela era criança.

Aliás, ler para uma criança é uma das atitudes mais afetuosas que um pai ou mãe podem ter. Esses minutos são instantes preciosos que nos permitem desconectar de todo esse ruído do mundo digital; nos permitem que a paciência e a atenção se aproximem aos poucos, dando espaço à criatividade, ao conhecimento, a um mundo de fantasia tão necessário para nos mantermos psicologicamente sãos.

Assim como meus pais me introduziram a Monteiro Lobato, pretendo apresentá-lo em breve a Totônio, meu filho, que inclusive já assistiu a um teatrinho de bonecos com as personagens e se encantou com o saci. Será uma oportunidade maravilhosa de relembrar as histórias do homem que tem o nosso sobrenome. E como eu me orgulhava disso na escola. De carregar o sobrenome e as sobrancelhas de um Monteiro, apesar de nenhuma conexão sanguínea com o escritor.

Além da coleção de ML, guardo outros exemplares do Círculo do Livro (aliás, todos de capa dura, com edições ilustradas e “redesenhadas” por mim), como o Dentinho Malcriado, a Nova Casa do Bebeto, Alice no País das Maravilhas. Há também alguns volumes da Coleção Taba. Eu era simplesmente apaixonada por esses livros que vinham com disquinho, e batizei-a de coleção curumim, por causa dos indiozinhos que estampavam as capas. Aí sim: lembro de todas as historinhas, que recuperavam o folclore brasileiro com canções de MPB ao fundo. Foi meu primeiro contato com Chico Buarque, Tom Zé. Caramba! E só beeem mais tarde fui perceber quem eram essas figuras e a importância de uma coleção dessas para crianças.

Os demais livros de casa eram adquiridos durante as aventuras no mercado. Meus pais costumavam fazer juntos a “compra do mês”. Morava na Vila Guaíra na época (antes de me mudar pra Campinas), e costumávamos abastecer nossa casa no Jumbo Eletro, da Avenida Presidente Kennedy (hoje é Extra, se não me engano). E lá, nesse mercado, havia uma fileira inteira repleta de livrinhos infantis, sejam de historinhas ou de atividades, alimentos para a alma. Depois que me mudei de cidade, esse hábito permaneceu. Lembro o primeiro livro que consegui ler (sobre uns gatinhos). Também foi comprado num mercado. Meu pai sentou-se no sofá de casa e me ajudou a decifrar as frases. Parece que foi ontem.

Meu pai também me deu as Histórias da Carochinha. Dia desses, peguei pra ler pro Totônio. Duvidei que ele fosse gostar, porque não havia ilustrações. Mas não é que o garotinho ouviu do início ao fim o conto de João e o Pé de Feijão!!

Quando cresci um pouco mais, ganhei a coleção dos contos de fadas da Disney que vinha com fitas K7. Gostava do Ursinho Pooh (Puf pra mim), principalmente da voz dele quando se empanturrava de mel. E à medida que envelhecemos vamos dando conta das histórias por trás dos contos de fadas, histórias de bullying, rejeição, preconceito, enfim…

Dia desses, minha mãe encontrou na casa dela o Menino Maluquinho e me deu pra ler pro Totônio. Bem, não é exatamente pra idade dele. Mas essa questão de idade é relativa, principalmente porque hoje as crianças vão para a escola mais cedo (felizmente pude colocar Totônio com mais de dois anos, o que me rendeu certo ostracismo profissional, mas não posso reclamar); recebem mais estímulo e conseguem perceber muito mais coisas do que eu, por exemplo, nos anos 80.

Comecei a ler o Menino Maluquinho pro meu filho, adaptando alguns trechos, e não me lembrava que os pais do piá também haviam se separado na história. Ziraldo, fantástico, me fez chorar com o modo como ele contou essa situação que, veja, é tão comum. E me mostrou que um livro pode nos ajudar a enfrentar essas situações.

Na escola, conheci outras coleções e autores sensacionais, como Maria Clara Machado, Pedro Bandeira (que, inclusive, estudou no mesmo colégio que papai em Santos), Ruth Rocha (Marcelo, Marmelo, Martelo). Lembro da Bruxa do Quebra-cabeça, da Marta Melo; da coleção que vinha Meninos sem Pátria e o Escaravelho do Diabo, da editora Vaga-lume, da clássica Para Gostar de Ler, por meio da qual descobri Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, sem me dar conta de quem eram essas feras.

Mesmo cercada por livros, ainda devo a leitura de muitos clássicos, como Ulisses, por exemplo. Mas o que me dá satisfação é que a biblioteca do Totônio está aumentando ao lado da minha, principalmente a de literatura brasileira. Assim vou crescendo junto com ele, aprendendo com o menininho a enxergar as histórias e a vida de forma mais criativa; aprendendo a superar os problemas chatos de adulto que ainda não fazem parte da cabecinha dele.

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O inglês de carne e osso

Preciso entregar um texto sobre o Coldplay desde o ano passado, quando assisti ao documentário a “Head Full of Dreams” sobre os 20 anos de estrada da banda inglesa. Estou adiando devido ao turbilhão de acontecimentos que transformaram minha rotina nos últimos três meses. Mas agora, talvez, eu consiga. E quem sabe começando por aqui.

Tenho uma história com Coldplay. Eu e milhões de fãs ao redor do mundo, é claro. Mas toda vez que eu ouço Coldplay, volto no tempo em que a MTV transmitia os clipes da banda. Volto no tempo quando minha mãe descobriu que tinha câncer. E aí minha história começa.

É claro que eu já conhecia “Yellow”. Quem não conhecia? Aliás, o primeiro álbum é espetacular. Redondinho. E o documentário mostra bem como Chris Martin tinha certeza que chegaria ao topo. Predestinado.

“Nobody said it was easy”. “The Scientist”. Segundo álbum do Coldplay. A Rush of Blood to the Head. 2002. Se não me engano, foi por causa do clipe dessa música na MTV (saudosos Top 10, Top 20) que minha mãe conheceu a banda. É triste e inesquecível. Sobre um acidente de carro filmado de trás pra frente. “I’m going back to the start”. A letra termina assim.

“Clocks”. Lembro da minha mãe assistindo ao clipe dessa música todo santo dia. Menos triste. “Confusion that never stops/The closing walls and the ticking clocks”.

2007. Show do X&Y (terceiro da banda) no Via Funchal, em São Paulo. Comprei meus ingressos pela internet. Tinha um PC 486 com dial-up. A primeira tentativa não deu certo. Entrei no site novamente e lá se foram meus assentos. Consegui comprar na quarta fila (se não me engano). R$ 400 na VIP. Duas inteiras. Uma fortuuuuna hoje, imagine na época. Paguei com meu salário de editora.

Perto dos shows do Coldplay que lotam estádios hoje em dia, os de 2007 foram superintimistas. No Via Funchal, cabiam 2.700 sortudos. E foi simplesmente inacreditável. Sentei do lado de uma menina de Manaus. E no final do show, saímos da fileira e fomos para a frente do palco. De cara com a banda. Tocamos na mão do Chris.

Só me arrependo de não ter levado máquina fotográfica. Total absurdo. E minha tia, que morava em SP, ainda conseguiu assistir ao final do show de graça e registrou umas fotos pelo celular dela (que não era um BlackBerry, top na época).

Extasiadas, pegamos um táxi para voltar pra casa dela. Só que não. Fomos nós para o bar do hotel na Oscar Freire (acho que era o Fasano) onde a banda estava hospedada. Mas, calma, eu não queria tietar. Afinal, estava sem máquina fotográfica. Eu tinha um propósito.

O bar estava vazio. E, sinceramente, achava impossível chegar perto dos caras. O máximo que podia acontecer era jantarmos e pronto. Lembro que eu pedi um Cosmopolitan ao estilo Sex And The City e que havia um trio tocando bossa nova.

Até que…de repente… Chris Martin, ele mesmo, aparece em carne e osso. Eu não sabia o que fazer. Disfarcei. Ele ficou lá curtindo uma musiquinha e….foi embora. Eu fui atrás. Precisava falar o verso de “Clocks” adaptado.

E o mais incrível foi que um rapaz que trabalhava no hotel me ajudou. Me lembro perfeitamente do Chris, com quase 1,90 de altura, cabelos encaracolados, olhos azuis. olhando pra baixo, em minha direção. Eu mal conseguia falar português, imagina inglês. Mas ele captou a mensagem (o rapaz do hotel me ajudou de novo). “Am I part of the cure, or am I part of the disease?”, diz o verso de “Clocks”. E eu consegui falar pro Chris, em inglês, que ele foi parte da cura da minha mãe. Ele deu um sorrisão. I got it!

E assistindo ao documentário, dia 14 de novembro de 2018, lembrei-me de tudo. Soube que X&Y foi o álbum de uma fase difícil da banda, depois do estrondoso sucesso que foi o segundo disco. Assim, tudo fez mais sentido. Até o fato de eles se apresentarem de preto. E quando tocou “Yellow”, é claro, eu chorei. E no cinema, nos letreiros, eu chorei ouvindo “The Scientist” ao lado da minha mãe.

E graças à minha tia, tenho uma recordação com poucos pixels, mas com uma resolução de vida incrível!

 

 

“João e Maria” me faz chorar

Assisti a dois shows de Chico Buarque no Teatro Guaíra. Mas lembro que ele veio se apresentar em Curitiba três vezes desde que eu entrei na faculdade. A primeira, se não me engano, foi em 1999. Eu tinha 19 anos, fazia Jornalismo na PUCPR. Não trabalhava, pai pagava a faculdade e o ingresso era muito caro na época, assim como ainda é para a maioria da população.

Naquele tempo, eu tinha uma verdadeira obsessão em conhecer meus ídolos. E lá fui eu atrás do Chico, assim como fiz com Caetano, Gil, Rita e boa parte dos tropicalistas. Arrastei minha mãe junto porque ela teria um papel fundamental nessa empreitada. Veja bem, há 20 anos, aparelhos de celular eram coisas praticamente inexistentes entre nós. Para tirar uma foto, usávamos a boa e velha máquina fotográfica. E, depois, íamos até a ótica revelar o filme. Se a foto ficasse boa, ok. Se não, já era.

A maioria dos artistas que se apresentavam no teatro ficavam hospedados num hotel cinco estrelas na frente da biblioteca. Resolvi arriscar. Precisava ver de perto aqueles olhos azuis e talvez ouvir a voz de quem compusera boa parte das canções mais representativas do país, filho do intelectual que escreveu sobre as raízes do Brasil.

Não me lembro quanto tempo fiquei plantada na frente da porta do hotel. O mensageiro disse que Chico havia ido passear na Rua XV. Assim, no meio do povão. Eu insisti e, algum tempo depois, ele virou a esquina sozinho. Perguntei se ele podia sair na foto comigo e pronto. Consegui. Sem abrir a boca, ele entrou no hotel.

 

No segundo show, em 2007, fiz questão de ir. Só que tinha um porém. Há dez anos, não era comum comprar ingressos pela internet. Era preciso ir até a bilheteria do teatro. Nesse caso, novamente o Guaíra (já que não tínhamos e ainda não temos muita opção de espaços para show na capital paranaense) e seus cerca de 2 mil lugares na plateia e dois balcões. Imagine, então, o tamanho da fila que se formou do lado de fora. Era tanta, mas tanta gente que a multidão virou notícia.

Provavelmente eu estava de folga do trabalho, ou era algum feriado, porque lembro de ter ficado – eu e minha mãe – praticamente o dia inteiro até conseguir comprar três assentos bem no fundo do teatro. Que loucura, certo? Louco mesmo foi quem chegou de madrugada e comprou lá na frente!!!

Pois bem, sei que no dia do show, briguei feio com a minha mãe, tadinha, e terminei indo com meu pai. Pra ser sincera, não gostei da apresentação. Foi como se estivesse ouvindo o disco. E ainda com as canções de que eu menos gostava. Fiquei ainda mais deprimida. Chico parecia uma estátua cantando lá na frente. Com aquela sua voz sofriiiiida. Acho que nem piscava. Bem, não dava pra saber. Estava lá no fundo do teatro. Só sei que quando ele cantou João e Maria eu chorei.

 

Sou Chico desde a infância

Preciso escrever sobre o Chico antes que detalhes daquele show histórico no Teatro Guaíra se apaguem da minha memória.

Conheço Francisco Buarque de Hollanda desde a minha infância. Primeiro, se não me engano, por uma fitinha cassete que meus pais ouviam na Brasília amarela, e depois no Voyage cinza (que os ladrões furtaram para cometer um assalto e foi recuperado pela pol polícia) e depois no Santana preto. Tenho essa fita até hoje, que por pouco não foi totalmente vandalizada por Totônio. Quando tinha um aninho, o piazinho insistia em abrir aquela caixinha de acrílico, tirar a capinha e coloca-la novamente. Até que um dia, claro, ele rasgou parte do encarte com as letras da música de “Meus Caros Amigos” (1976).

E não é que dia desses, vasculhando no Spotify, encontrei essa canção na voz de Adriana “Partimpim” Calcanhoto. Coloquei pro Totônio ouvir. “Bico calado, muito cuidado, que o homem vem aí, o homem vem aí”. Passaredo foi, na verdade, composta para o filme “A noiva da cidade”, de Alex Viany, de 1978.

No livro , “Chico Buarque, Letra e Música”, de 1989, o autor Humberto Werneck lembra que Chico revelou num programa de televisão que não entendia absolutamente nada de bicho e procurou o nome dos pássaros na enciclopédia. E, para espanto geral, ainda disse: “eu detesto bicho” (a frase se dita hoje certamente teria mais impacto). No livro, Werneck ainda escreve que as aves curiosamente arrumaram um jeito de se vingar de Chico. Um dia, um passarinho displicente, como se soubesse da ofensa do compositor, deu um voo rasante e fez cocô na cabeça dele.

Chico Curumim
Livro da coleção Taba com a música Passaredo.

Se eu rebobinar a memória até os anos 90, surgem os livros escolares, de língua portuguesa, literatura. Lembro como se fosse ontem da letra genial “Construção”, de 1971, do disco de mesmo nome, estampada numa das páginas do meu livro de literatura. Numa rápida pesquisa pelo Google, você vai encontrar “n” blogs tecendo comentários sobre a canção composta num dos períodos mais tensos da ditadura e construída perfeitamente com versos alexandrinos (de 12 sílabas) e as 17 proparoxítonas, que se alternam.

No site do compositor, (www.chicobuarque.com) consta uma entrevista dele à Judith Patarra publicada na revista Status de 1973. Chico examina sua obra-prima e afirma que não foi sua intenção retratar o problema dos operários: “Em Construção, a emoção estava no jogo de palavras (todas proparoxítonas). Agora, se você coloca um ser humano dentro de um jogo de palavras, como se fosse… um tijolo – acaba mexendo com a emoção das pessoas”.

De fato, comecei a me interessar pela obra do Chico na minha adolescência e depois na faculdade. Lembro que percorria muitos sebos de Curitiba a caça dos vinis antigos. Chegava em casa e botava pra tocar na extinta vitrola Gradiente. E ficava cantando e dançando e descobrindo o que estava por trás das letras, dos sonetos, dos versos dos poemas. As figuras femininas em primeira pessoa, os dribles na censura…”apesar de você/ amanhã há de ser outro dia”. Ele cantava pros generais e eu pro meu ex-namorado.