Autobiografia de leitora

Minha memória mais antiga de leitora vem do berço. Eu, deitada, quase dormindo, e minha mãe acomodada numa poltrona, sob a luz de um abajur, forçando os olhos para ler a coleção inteirinha de Monteiro Lobato, que guardo até hoje.

Os 15 volumes estão expostos na estante do meu apartamento juntamente com outros livros e coletâneas que meus pais adquiriam via Círculo do Livro, um clube de livros dos anos 80 e que foi a grande base introdutória de leitura pra muita gente da minha geração.

A cada noite, mamãe pegava um dos volumes da coleção com as personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo e lia um trecho pra mim. Começou pela letra M, com as Reinações de Narizinho, e terminou no O, com a continuação dos trabalhos de Hércules e histórias diversas.

Hoje, revisitando o passado e admirando essa coleção maravilhosa, surge um quê de decepção ao me dar conta que sou incapaz de me recordar de boa parte do conteúdo das histórias. Talvez sofra de déficit de atenção. Lembro sim das personagens, da Emília toda tagarela (depois ganhei umas bonequinhas de pano da Estrela), da Dona Benta, da Tia Nastácia, do Saci-Pererê, do Visconde de Sabugosa etc etc.. Registrada na memória ficou minha mãe, lendo pra mim. E quando eu adormecia, ela certamente se enriquecia com aquelas histórias que não havia lido quando ela era criança.

Aliás, ler para uma criança é uma das atitudes mais afetuosas que um pai ou mãe podem ter. Esses minutos são instantes preciosos que nos permitem desconectar de todo esse ruído do mundo digital; nos permitem que a paciência e a atenção se aproximem aos poucos, dando espaço à criatividade, ao conhecimento, a um mundo de fantasia tão necessário para nos mantermos psicologicamente sãos.

Assim como meus pais me introduziram a Monteiro Lobato, pretendo apresentá-lo em breve a Totônio, meu filho, que inclusive já assistiu a um teatrinho de bonecos com as personagens e se encantou com o saci. Será uma oportunidade maravilhosa de relembrar as histórias do homem que tem o nosso sobrenome. E como eu me orgulhava disso na escola. De carregar o sobrenome e as sobrancelhas de um Monteiro, apesar de nenhuma conexão sanguínea com o escritor.

Além da coleção de ML, guardo outros exemplares do Círculo do Livro (aliás, todos de capa dura, com edições ilustradas e “redesenhadas” por mim), como o Dentinho Malcriado, a Nova Casa do Bebeto, Alice no País das Maravilhas. Há também alguns volumes da Coleção Taba. Eu era simplesmente apaixonada por esses livros que vinham com disquinho, e batizei-a de coleção curumim, por causa dos indiozinhos que estampavam as capas. Aí sim: lembro de todas as historinhas, que recuperavam o folclore brasileiro com canções de MPB ao fundo. Foi meu primeiro contato com Chico Buarque, Tom Zé. Caramba! E só beeem mais tarde fui perceber quem eram essas figuras e a importância de uma coleção dessas para crianças.

Os demais livros de casa eram adquiridos durante as aventuras no mercado. Meus pais costumavam fazer juntos a “compra do mês”. Morava na Vila Guaíra na época (antes de me mudar pra Campinas), e costumávamos abastecer nossa casa no Jumbo Eletro, da Avenida Presidente Kennedy (hoje é Extra, se não me engano). E lá, nesse mercado, havia uma fileira inteira repleta de livrinhos infantis, sejam de historinhas ou de atividades, alimentos para a alma. Depois que me mudei de cidade, esse hábito permaneceu. Lembro o primeiro livro que consegui ler (sobre uns gatinhos). Também foi comprado num mercado. Meu pai sentou-se no sofá de casa e me ajudou a decifrar as frases. Parece que foi ontem.

Meu pai também me deu as Histórias da Carochinha. Dia desses, peguei pra ler pro Totônio. Duvidei que ele fosse gostar, porque não havia ilustrações. Mas não é que o garotinho ouviu do início ao fim o conto de João e o Pé de Feijão!!

Quando cresci um pouco mais, ganhei a coleção dos contos de fadas da Disney que vinha com fitas K7. Gostava do Ursinho Pooh (Puf pra mim), principalmente da voz dele quando se empanturrava de mel. E à medida que envelhecemos vamos dando conta das histórias por trás dos contos de fadas, histórias de bullying, rejeição, preconceito, enfim…

Dia desses, minha mãe encontrou na casa dela o Menino Maluquinho e me deu pra ler pro Totônio. Bem, não é exatamente pra idade dele. Mas essa questão de idade é relativa, principalmente porque hoje as crianças vão para a escola mais cedo (felizmente pude colocar Totônio com mais de dois anos, o que me rendeu certo ostracismo profissional, mas não posso reclamar); recebem mais estímulo e conseguem perceber muito mais coisas do que eu, por exemplo, nos anos 80.

Comecei a ler o Menino Maluquinho pro meu filho, adaptando alguns trechos, e não me lembrava que os pais do piá também haviam se separado na história. Ziraldo, fantástico, me fez chorar com o modo como ele contou essa situação que, veja, é tão comum. E me mostrou que um livro pode nos ajudar a enfrentar essas situações.

Na escola, conheci outras coleções e autores sensacionais, como Maria Clara Machado, Pedro Bandeira (que, inclusive, estudou no mesmo colégio que papai em Santos), Ruth Rocha (Marcelo, Marmelo, Martelo). Lembro da Bruxa do Quebra-cabeça, da Marta Melo; da coleção que vinha Meninos sem Pátria e o Escaravelho do Diabo, da editora Vaga-lume, da clássica Para Gostar de Ler, por meio da qual descobri Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, sem me dar conta de quem eram essas feras.

Mesmo cercada por livros, ainda devo a leitura de muitos clássicos, como Ulisses, por exemplo. Mas o que me dá satisfação é que a biblioteca do Totônio está aumentando ao lado da minha, principalmente a de literatura brasileira. Assim vou crescendo junto com ele, aprendendo com o menininho a enxergar as histórias e a vida de forma mais criativa; aprendendo a superar os problemas chatos de adulto que ainda não fazem parte da cabecinha dele.

IMG_0671.JPG

Verde que te quero verde

Domingo de Páscoa foi inesquecível. Depois de ganhar ovinho da mamãe, do papai, da vovó e do vovô, Totônio queria mais. Não chocolate. Mas hambúrguer de siri. Tudo culpa do Bob Esponja.

Pego o guri na casa do pai e vamos rumo à Meca da junk food: o drive-thru do McDonald’s. Lotado, mas suportável. Compro um lanche da felicidade, sem queijo, sem picles, sem praticamente nada.

_Que bebida, Totônio?

_ Água. Geladinha.

Totônio é assim. Pequeno, mas muito, muuuuuito exigente. 

Ele exige da gente. Muito. Demais. Pra caramba. A ponto de me deixar quase careca. Por isso já deixei meu cabelo curtinho. Fica mais fácil quando a queda acontecer.

_ Não esquece do alface, tá mamãe.

Claaaaaro. O único verde do lanche da felicidade é aquele do picles. Mas, como eu sou precavida e adivinho as coisas, tinha alface verdinha lavada na geladeira. 

_Qual o brinquedo?, pergunta a moça.

_ Putz. Qualquer um. O que faz aquele ali?

_ Nada. Nenhum faz nada.

_ Então, me vê aquele passarinho verde bicando alguma coisa (o passarinho era um corvo, na real).

Retiramos o pedido e fomos pra casa.

Na garagem, descubro que não me deram o brinquedo. Totônio começa a berrar na cadeirinha.

_Ok. Você venceu!

Como era perto, decidi voltar. Estacionei na rua. Peguei o guri no colo e entrei pela saída.

_Moço, vocês esqueceram de me dar o brinquedo. E o Danoninho também. 

Totônio não quer saber mais de Danoninho, só de chocolatinho. Mas eu paguei pelo combo inteiro, então eu mesma como essa coisa.

De volta à garagem. Taco um ovo dentro da mochila e coloco nas minhas costas. Com a mão esquerda, carrego outra sacola com mais ovo e a sacolinha do lanche da felicidade. No meu lado direito, o piá se encaixa no colo para alegria da minha escoliose e satisfação das minhas varizes. E vamos nós, rumo às escadas que levam ao quarto andar. Próximo passo é fazer mágica: transformar o sanduíche em “siriburguer”, que de siri não tem nada. Tá mais pra “vegburguer”. 

Tiro a carne (sim, veio com carne) e deixo as duas fatias de pão abertas para recheá-las com o mais puro e delicioso sabor de alface.

Sem que eu me desse conta, Totônio já havia devorados as folhas. Então eu pego a travessa de novo e faço uma montanha verde. Verde que te quero verde, ao melhor estilo Garcia Lorca e seu “Romance Sonâmbulo”:

Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las…

Fazia tempo que não me sentia tão feliz. Quando terminou, Totônio, meu verdinho, ainda queria meu pão. Mas eu não podia dar meu pão, porque ele estava pintado de amarelo e vermelho. Totônio só queria o verde da verdura, como o poema de Leminski que Caetano, o rei da paçoquinha de quarentena, musicou:

De repente
me lembro do verde
da cor verde
a mais verde que existe
a cor mais alegre
a cor mais triste
o verde que vestes
o verde que vestiste
o dia em que te vi
o dia em que me viste

De repente
vendi meus filhos
a uma família americana
eles têm carro
eles têm grana
eles têm casa
a grama é bacana
só assim eles podem voltar
e pegar um sol em Copacabana

Ou a verdura menos amarga da canção do Black Maria:

Verdura, Verdura
Pra saciar a fome de cultura
Verdura, Verdura
Plantando essa idéia e colhendo verdura madura
Que loucura
Me beija, me aleja, me pega e me cura

Gosto de Lorca, Leminski, Caetano, Black Maria, mas preciso deixar claro que não torço pra coxas nem verdes palmeiras. Essa cor, aliás, não é minha preferida, mas não posso negar que traz renovação e um pouquinho de esperança que Tistu, ops, Totônio volte a comer verde novamente.

IMG_0533

A Quaresma vai e a Quarentena fica

Toda vez que olho para o meu filho, costumo lembrar do dia em que Totônio nasceu. Ao ver aquele serzinho tão frágil, pensei: esse menino vai salvar o mundo. Meu companheiro de quarentena está salvando o meu mundo. Totônio foi concebido em 2 de fevereiro, dia de Iemanjá, também conhecida como Janaina. Como eu sei? A certeza era tanta que os primeiros enjoos só confirmavam o que eu já sabia. Também tinha absoluta certeza que daria luz a um menino e que esse menino teria nome de santo. 

Desde as primeiras alterações no meu corpo, chamava Totônio carinhosamente de “Gordinho”.  Eu passava tão mal que o exame de sangue acusou um nível de hormônio altíssimo. Na consulta ao ginecologista, já era possível ouvir o coraçãozinho de Totônio bater. Chorei. Eu sempre choro.

Essa quarentena é, na verdade, a segunda que Totônio e eu atravessamos juntos. A primeira foi durante o pós-parto. Se você pesquisar no dicionário vai encontrar que quarentena, entre os inúmeros sentidos, significa a fase de abstinência sexual, chamada também de resguardo. É o período pelo qual as puérperas devem passar até que corpo e mente se restabeleçam. Existem mulheres que simplesmente ignoram essa fase, talvez por pressão do parceiro, e nove meses depois estão lá, de volta à maternidade. 

Não seria nada mal se Totônio tivesse um irmãozinho. Quem sabe ele não me chamaria de cinco em cinco minutos para brincar ou simplesmente ver televisão com ele ou acompanhá-lo ao banheiro pra fazer xixi. Quem sabe eu poderia tomar café da manhã tranquilamente enquanto os dois brincassem sozinhos. Quem sabe.

Provavelmente, Totônio não terá um companheiro por parte de mãe. Esse é o problema de engravidar tarde, se separar, decidir estudar, ter que procurar emprego e emendar em outra quarentena, essa provocada pela pandemia de covid-19. Recorrendo ao Tesauro Eletrônico do Ministério da Saúde, a palavra passa a significar o “isolamento de indivíduos ou animais sadios pelo período máximo de incubação de doença”. E esse período de isolamento é bem provável que ocasione um baby boom, assim como aconteceu no pós-guerra.

Depois que Totônio nasceu, guardei várias roupinhas dele pensando na possibilidade de um dia engravidar novamente. Mas esse desejo foi se desmantelando, e aos poucos fui doando o enxoval e toda a mobília do quarto. Deve haver no mínimo umas 10 crianças que puderam aproveitar as coisinhas do guri. Confesso que ainda escondo umas pecinhas de roupa no armário dele, como a saída de maternidade que a vovó Silvia comprou. Vermelha para afastar mau olhado.

Vermelho também simboliza a cor do amor, da paixão, do coração, do sangue. Sangue que Cristo derramou para nos livrar do pecado. 

A Quaresma já terminou, mas a quarentena continua. 

No último dia que Totônio foi à escola, desejei feliz Páscoa para as profes porque a previsão era de que as aulas fossem retomadas na segunda-feira, 13 de abril. A diretora me olhou e ficou surpresa ao ligar os pontos. “Simbólico, não é mesmo?”, comentei.

Ou seja, a promessa era de vida nova nesta semana. #sqn

Na verdade, a vida nova começou com a quarentena. Pra mim, um pouco antes. Desde o ano passado, venho me adaptando a um mundo diferente, quando decidi viver um dia de cada vez. Dar valor ao presente, ao aqui e agora, entender o mindfulness, que virou modinha, mas é uma prática milenar que visa melhorar nossa qualidade de vida. Não é preciso ser coach para sacar que ficar preso ao passado e fazer planos para o futuro pode nos levar à ansiedade, depressão, frustração. Evidentemente, na prática, não é tão simples assim. O apego que temos ao passado e ao futuro é enorme.

Hoje, lê-se muito sobre isso. Todo site, todo blog, todo cronista, colunista, influencer, intelectual comenta sobre essa mudança de rotina que fomos obrigados a adotar por conta da pandemia, como fazer home office e aproveitar o tal ócio criativo, conceito desenvolvido pelo sociólogo italiano Domenico De Masi (cuja palestra tive a oportunidade de assistir ano passado). Problema é que essa criatividade precisa acontecer dentro de casa. 

Fato é que precisei abdicar da minha vida de luxo – que seria abrir mão do meu pilates, da minha diarista, por exemplo – para economizar. Se há uma meta que pretendo alcançar é viver com o necessário, lema que meu irmão abraçou há anos e que agora passa a fazer muito sentido. O tio Zé trabalha em mercado e está na linha de frente dessa guerra em que o Brasil já ocupa o 11º lugar no ranking de mortos, informação ignorada por essa gente que desrespeita o isolamento social.

Acredito que essa crise nos permite mensurar nossas prioridades. Só que, num mundo consumista, egoísta, de narcisos, exigir que todos alcancem esse grau de compreensão ainda é utópico. Certamente tudo isso servirá de lição de casa pra Totônio, que volta e meia vai para sua lousa; pega a caneta e finge que é professor. 

Daqui a pouco, ele acorda para procurar seus ovinhos. Para nós, essa Páscoa sempre será lembrada como a passagem definitiva para uma vida nova. Pois a esperança é a última que sucumbe ao vírus.  

easter eggs
Foto por Breakingpic em Pexels.com

Cheirinho de peixe no ar

Sexta-feira Santa. Acordo com cheirinho de peixe no ar. Afinal, pela tradição cristã, não se deve comer carne vermelha em ato de compadecimento ao sacrifício de Jesus Cristo. Sexta-feira da Paixão é dia de reflexão, meditação, de ficar em silêncio, lembrando a via crucis do filho de Deus, que deu sua carne e sangue pelos homens.

Minha mãe disse que era comum as pessoas ficarem em casa, sem ligar a televisão, em respeito à crucificação de Cristo e sua morte no calvário. 

Como me lembro muito pouco da época de catequese, fui pesquisar o motivo que originou essa tradição. Descobri que a carne vermelha, na antiguidade, era artigo de luxo para o povo. Na Idade Média, por exemplo, só era consumida em banquetes de nobres. 

São Tomás de Aquino explicou, em sua Suma Teológica, que a carne vermelha é mais saborosa e, portanto, seu consumo é mais prazeroso. Abster-se dela, então, seria um ato de sacrifício.

Por isso, devorar um bife tornou-se sinônimo de gula, um pecado capital. No site da Revista Galileu, encontrei a informação que a igreja orientava os fiéis a comer carne antes da quaresma, o que deu origem aos banquetes chamados “carnevales” (por isso o carnaval é a festa da carne!). Depois, nos quarenta dias antes da Páscoa, era o momento de abstinência. 

“Com o passar dos séculos, a carne deixou de estar presente somente nos banquetes e perdeu seu caráter simbólico de pecado. A orientação atual é que os católicos que desejarem se abstenham na Quarta-Feira de Cinzas, nas sextas-feiras da Quaresma e na Sexta-Feira Santa. Pessoas enfermas, idosas e crianças são isentas dessa orientação”, explicou a irmã Maria Inês Carniato, da Editora Paulinas, em entrevista à revista.

Acredito que, hoje, em tempos de pandemia de covid-19, adultos devem também estar liberados de comer carne vermelha, já que vivemos com tantas restrições (pelo menos para quem segue o protocolo #fiqueemcasa).

Quando eu era pequena, nós comíamos peixe toda sexta-feira. Não é porque seguíamos o código de direito canônico, mas era o cardápio da semana feito pela minha mãe. Se tínhamos que comer peixe, por que não na sexta? 

Segunda-feira era um dia mais light. De fritada de batata, por exemplo. Quarta, dia do frango. Quinta, do macarrão. Minha mãe também fazia croquetes, e eu amava as almôndegas e panquecas dela. Que saudade!

Mas quando chegava a sexta, eu torcia o nariz. Não gostava muito de pescada e lembro que um dia me revoltei. Me neguei a comer. Dona Silvia ficou nervosa e disse que eu só poderia me levantar da cadeira após comer tudinho. Hoje sinto falta da pescada de sexta-feira. Hoje adoro peixe e praticamente não vivo sem, principalmente após descobrir a culinária japonesa.

Como estamos vivendo num certo loop temporal, tipo “Feitiço do Tempo”, muita gente deve ter esquecido que hoje era dia de comer peixe. Espero que a Igreja Católica perdoe esses pobres fiéis que descongelaram carne moída para comer com nachos. Afinal, peixe gostoso é peixe fresco. Eu até anotei na agenda do celular o número de telefone da peixaria do Mercado Municipal, que está fazendo delivery. Sou cliente e o preço deles é muito bom. Hoje a carne branca não é tão barata e abundante como na antigüidade, mas o quilo da tilápia ainda continua sendo menos salgado que o da alcatra.

Totônio gosta muito de peixe e dia desses comeu um filezão. Mas ultimamente ele está adepto do quase-jejum. Come quase nada. Ontem, segundo informações do pai dele, jantou linguiça e morangos. Quatro morangos. Nem acreditei! 

Tem dias que eu me descabelo (ainda consigo, apesar do cabelo curtinho). Tem dias que apelo pra criatividade e faço carinhas com a comida. Que sacrilégio!

Nesta Sexta-feira Santa, foi mais complicado. Relatório do dia: Totônio acordou meio-dia; jogou Uno; comeu paçoca; tomou mamadeira e….só 😦 

Quando chegou em casa teve um pequeno surto de abstinência de doguinho. Eu disse que “não, não e não”. Até ele se acalmar e pedir chocolatinho. A paixão por chocolatinho e o meu sacrifício em negá-lo constantemente chega a me deixar sem forças. Consegui fazer um combinado: só daria mais chocolatinho se ele comesse brócolis. Deu certo! 

Totônio, com seu paladar doido, foi comendo brócolis intercalados com chocolatinhos. E disse que fará muitos “número 3” (puns) de brócolis amanhã. Aleluia! 

IMG_0444.jpg

A máscara caiu

O protocolo é usar máscara. O baile continua para aqueles que dançam conforme a música e cobrem suas bocas sem dar um pio. Que escondem seus sorrisos por trás de um tecido fino preso por elásticos. Mas o sorriso ainda está lá. Com ou sem dentes.

Para outros, a máscara caiu. Os rostos foram desnudados pela quarentena. O isolamento nos proporciona descobrir “quem é quem” nesse jogo de esconde-esconde. É como se fosse possível fazer um raio X de quem você conhece, ou acredita que conhecia. Alguns casos mais delicados precisam de tomografia, exame que revela com maior precisão o grau do problema, o grau da lesão. O contraste ajuda a definir o nível de vaidade. De egoísmo. O grau de maluquice. De gula. De carência. De insegurança. De avareza. De Inveja. Cobiça. Ira. Luxúria. Soberba. Preguiça. O grau da mentira. Mas também faz reluzir o estágio do altruísmo, de tolerância, de honestidade. Potencializa a força da amizade, do amor, do carinho, do companheirismo.

No raio X dos vaidosos, detectamos um nódulo que mostra um mundo perfeito. Esse pessoal tem dificuldade de olhar para os lados e trava um discurso um tanto ambíguo. Descobriram esse tal mundinho perfeito durante o confinamento. Trabalhando em casa, cozinhando, fazendo coisas que todos – vamos combinar – estamos fazendo, mas que a grande maioria não precisa ostentar. Sair se gabando por aí de atitudes corriqueiras que devemos, sim, dar valor no dia a dia, mas que não há necessidade de transformá-las numa fantasia. É bom ter pés no chão. É saudável ficar sem maquiagem. Sem salto alto. 

Nos confins do confinamento, o vaidoso está lá, com suas caras e bocas, pedindo, suplicando por uma aprovação qualquer nesse grande Big Brother. Um like. Um coração. Um aplauso que seja. O laudo diz que a vaidade pode ser provocada pela combinação de carência com insegurança. E como não há sustentação sem ancoragem, o tombo, a queda, o mergulho para esses que vivem nessa bolha machucam em dobro. O ego vai subindo, subindo, subindo até que… plaft. Leva o vaidoso direto pra UTI.

No raio X dos altruístas, detectamos uma íngua, benigna, que se manifesta quando alguém está em apuros, quando alguém precisa de um prato de comida na rua, um cobertor, uma roupinha para o neném que nasceu ou uma simples palavra de carinho, mesmo à distância. É como receber o chamado de Batman no céu. O herói morcego, animal que pode ter transmitido o coronavírus aos humanos. Para o xamanismo, o voo do morcego significa a iminente transformação do ego. Quando um ciclo se encerra e dá a vez a outro. Eu li na internet que o totem do morcego simboliza a ilusão, o renascimento, os sonhos, as intuições. Que permite viagens espirituais e melhora a comunicação. Na China, o único mamífero voador é sinônimo de felicidade e sorte. Quem diria.

Totônio nunca gostou de usar máscaras, mesmo sendo fã dos PJ Masks. O Lagartixo tinha sua máscara verde, mas algo o incomodava. Talvez se sentisse sufocado ou talvez o elástico apertasse suas orelhas. Sua primeira fantasia foi de Batman, o homem morcego. Não tinha máscara, só um cinto. 

O guri, por enquanto, decidiu que não quer máscara. Não precisa esconder sua identidade. Sua principal arma atualmente é o álcool gel nas mãos que precisa passar a cada saída da nave-mãe.

Resta saber qual será o resultado desse retiro espiritual que estamos fazendo. Se a vaidade dará lugar à modéstia. Se o morcego ainda terá asas pra voar.

pexels-photo-4031867.jpeg
Foto por Edward Jenner em Pexels.com

Pedindo ajuda aos super-heróis

Talvez eu não sobreviva até o fim da quarentena. E não é por conta do coronavírus, não. Depois de 13 dias de um surreal confinamento, começo a ficar com hematomas das brincadeiras de luta, de super-herói, de levar pontapé quando Totônio me chama pra eu ir dormir juntinho dele na caminha. 

Minhas pernas são uma combinação esteticamente nada agradável de varizes com manchas roxas. Meus braços são tatuados com arranhões e respingos de oleo de cozinha. Marcas da quarentena.

Mas é bem possível que haja uma esperança. Com um interfone velho que encontrei sem uso, Totônio conseguiu se contactar com aqueles que podem nos livrar dessa enrascada do coronavírus. 

_ Oi, super-heróis! Salva o dia com seus amigos, tá? Vocês têm que vencer antes do gigante. Tá bom? Beijo! Tchau.

Totônio só esqueceu de mencionar que o gigante mais temido agora é o vírus. Segundo fontes oficiais (https://coronavirus.jhu.edu/map.html), o corona já infectou 719 mil pessoas e matou 42 mil. Itália, Espanha e França estão entre os países com maior número de mortos em decorrência dessa “gripezinha”. 

No gigantesco Brasil, já são 6.800 casos confirmados e 240 mortes.

Asterix poderia se juntar aos super-heróis e nos ajudar com uma poção mágica mirabolante que fizesse desaparecer os zeros, os pontos, as vírgulas das nossas dívidas. Então, os boletos seriam miraboletos: miragem de boletos. Para desespero dos pobres mortais, o quinto dia útil está chegando e com ele vem o poder de negociação. Pois se pouco entra, quase nada sai. Simples assim.

Totônio se esforça a cada dia para tentar exterminar esse vírus da face da Terra. Anteontem, eu saía do banho e ele surgiu falando no iPhone. 

_ Com quem você está falando, Totônio?

_ Com a moça robô.

_ Com quem?

Era a Siri. Totônio perguntou pra Siri “que horas o vírus ia acabar”:

_ Ela respondeu que é às 23 horas, mamãe!!!!

E o guri se animou todo, porque 23h estava bem pertinho. O bate-papo entre os dois continuou. Totônio perguntou onde a Siri nasceu:

_ Fui projetada na Apple da Califórnia.

Totônio fez uma cara de desconfiança, de quem não entendeu muito bem essa história de Apple, e deu um boa noite caprichado à moça robô. A Siri respondeu:

_ Obrigada pela polidez. É uma das atitudes humanas que mais admiro.

No dia seguinte, acordamos com uma valsa tocando longe. Algum vizinho nos brindou com uma terapia auditiva logo no café da manhã. Seria Vivaldi? Seria Strauss? Seria o toca-discos do Batman? 

Só sei que o céu estava tão lindo que parecia um sonho. Quem dera esse pesadelo fosse uma bela mentira, uma brincadeira de mau gosto. Que amanhã, dia 2 de abril, esse zumbido todo desaparecesse depois de um leve assobio.  

P.S.: Nesse exato momento, escuto alguém ao violão tocando Pink Floyd. Wish you were here.

batman car comic book hero
Foto por Picography em Pexels.com