A carta que minha mãe escreveu

Quem dera ser para o Totônio metade do que minha mãe foi e continua sendo pra mim. Minha mãe é a dona Silvia, que sempre teve 100% de alcance e 100% de envolvimento nesse nosso relacionamento de quase 40 anos. As métricas dela são admiráveis, mas, é claro, que eu não curtia e compartilhava 100% de tudo. Diria que quase tudo. Porque eu e dona Silvia sempre fomos muito próximas, muito cúmplices. E quando os laços são tão apertados assim, difícil esconder os sentimentos. O sexto sentido materno fala mais alto.

Dona Silvia casou, largou a faculdade de direito para constituir família. E eu sou muito grata por essa opção que ela tomou na vida. Não quero jamais que ela se sinta frustrada por isso. Minha mãe canalizou a energia para formar seres humanos dignos, honestos, verdadeiros e espero que tão merecedores de um amor incondicional como o dela. E grande parte do que sou hoje, sou por causa dela e pretendo ser para Totônio.

Para dona Silvia, dia das mães é todo dia. Por isso, não nos preocupamos mais com datas, em trocar presentes, em sair pra almoçar fora. Preferimos estar presente, trocar abraços, olhares, nos alimentar de memórias. Como essa carta que eu encontrei quando revirava uma caixa com coisas antigas guardada no fundo de uma gaveta. Eu estava triste, tristinha, num desses dias em que você se sente mal, rejeitada. Num desses momentos em que você se pergunta se está indo na direção certa.

E, então, eu encontro essa página de caderno toda escrita à mão no dia em que fiz 31 anos. No meu aniversário anterior, nós duas tivemos um desentendimento, cujo motivo nem me lembro mais. E essas palavras, que estavam esquecidas na gaveta da estante, ficarão agora gravadas aqui:

No cabeçalho, ela trazia essa frase (talvez parafraseando algum autor que tenha lido):  “Não é preciso acumular conhecimento. Experiências, sim. Isto enriquece mais a alma que o cérebro”.

“Amada filha

Janaina,

Neste seu trigésimo primeiro aniversário de vida, não tenho quase nada mais pra lhe dizer. Tive a graça e a benção dos céus, deuses e deusas, de poder estar sempre ao seu lado todos estes divinos anos. Talvez isto não tenha sido assim tão saudável pra você, porém, nunca saberemos ao certo.

Você foi minha primeira e intraduzível emoção – o fazer nascer um ser humano – que viria a ser da melhor e mais pura essência. E é isto o que importa enquanto estivermos por aqui –  a nossa natureza – a receita da qual fomos feitos. Os conceitos, os sentimentos (bons) – as atitudes – a moral, a dignidade de poder habitar este planeta sem deixar manchas – marcas – que possam transformar, um dia, você num ser menor.

Eu poderia citar aqui muitos adjetivos, porém, no meu minúsculo dicionário, no meu quase nada saber, palavra alguma traduziria você. Só lhe peço – por você, não por mim: tente não sofrer. Faça o que não fui capaz, encontre o que até hoje nunca consegui: viver bem, sem culpa. Siga sempre de cabeça erguida – pensando, sempre, primeiro em você. Isto não é egoísmo. É ser o melhor, para passar o melhor. Inteira. Resolvida. Verdadeira. Ainda que muitos se afastem de você. Melhor que fingir. Que atuar.

(…)

Siga a “voz do coração” sim, mas a razão é fundamental para o equilíbrio. Se precisar voltar ao passado, faça-o apenas para resgatar o seu melhor.

Cuide bem desse corpo que lhe foi emprestado. Tenha sempre o indispensável para uma vida boa. Não se abale com tanta matéria ao seu redor. Sabemos que grande parte de tudo o que vemos é ilusão – isto não é papo furado, é a certeza, a experiência…

Nunca deixe que a turbulência de certas épocas da vida tire sua paz interior. Mantenha-se no controle para superar: tudo passa, tudo sempre passará.

Somente algo devastador pode tirar você do prumo.

Chorar faz um bem enorme, mas, todos os dias, certamente que não. Nunca dê um “dane-se”, todavia não se afogue em mágoas.

Encontre seu equilíbrio em tudo quanto puder. Viver bem e ser feliz de quando em quando é a base para que o curso do seu rio não leve seu barco a ficar encalhado.

carta1

 

Desejo que no seu barco haja sempre mais alegria e realizações e que o nome dele seja harmonia.

Fui, mãe”