Depois da quarentena vem…

Depois da tempestade vem a bonança. Depois da quarentena vêm…os boletos e o desemprego. Sei que devemos manter a positividade numa hora complicada como esta, mas a realidade é preocupante. Se já estava difícil se recolocar no mercado com o cenário menos apocalíptico, imagine depois desta pausa que o vírus nos obrigou a fazer. O dilema está mais vivo do que nunca: o que vem antes? Saúde ou dinheiro? Sem saúde não conseguimos trabalho. Sem trabalho não temos dinheiro. Sem dinheiro não temos plano de saúde. É um beco sem saída. 

Enquanto não podemos sair pela porta da frente, continuamos aqui observando tudo pelas janelas da nave-mãe. Esperando que chova pelo menos alguns centímetros pra baixar essa poeira toda. Na verdade, eu ficaria realmente preocupada se a lua resolvesse nascer do lado oposto. Ou se eu acordasse no meio de um filme do Lars von Trier. 

No prédio, já dá pra sentir a angústia das crianças que não suportam mais ficar em casa. A menininha de três anos corre para a porta e fica gritando desesperada por uns dez minutos.

_Mamãe, eu quero sair!!

_Mamãe, quero ir à casa da vovó!!

Pela janela, também escuto o estopim do cansaço de uma vizinha descontrolada, mãe de dois piás. O mais novo quase da idade do Totônio. O guri não para de gritar. Dá um nervoso. Então, a mãe berra:

_ PARA DE GRITAR!

O menininho parece obedecer ou…melhor nem saber o que aconteceu. Tudo isso é um teste. Teste de paciência, resiliência, resistência. Aquelas “ências” todas. 

Totônio continua tranquilo. Nosso sétimo dia foi dedicado à pintura. O guri pintou, mas não bordou. Fez um vulcão enorme numa cartolina que encontrei perdida e eu fiquei encarregada de desenhar o sol. O problema é que o rapazinho gasta toda a tinta de uma vez só. E a minha aflição é tão grande que dá vontade de fechar os olhos e só depois ver o estrago que aquela mãozinha de arco-íris faria pela casa. Nosso Picasso aqui só sujou o chão. Ufa! Durante essa quarentena, acredito que, 50% do tempo, passo com um pano não mão. Bandeira branca!

Totônio continuou pintando o sete e o meu rosto. Numa época como essa, a gente precisa dar a cara a tapa. Ele foi até o banheiro procurar um lápis delineador. Encontrei uma sombra em bastão que praticamente nunca usei e dei pra Totônio, que desenhou um círculo contornando meu rosto e vários pontos pretos. 

_O que é isso, Totônio?

_ É um cookie!, disse ele.

Ou seja, eu virei a mamãe cookie. De chocolate preto.

O desenho, porém, não foi recíproco. O guri não me deixou fazer uma pintura magnífica no rostinho dele. Só depois que pegamos uma tinta da época da Copa do Mundo, que provavelmente está vencida, ele me coloriu até o pescoço e se pintou sozinho. Colorido também ficou nosso brigadeiro, mas adivinha se Marco quis comer? O negócio dele é paçoquita mesmo.

À noite, Totônio encontrou a lanterna da Peppa Pig e fez surgir várias estrelas no céu da nossa nave-mãe. Como é tradição, pediu para ver mais um desenho na TV e dormiu depois de tomar um mamá com a fórmula do amor e o gosto da lua. 

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O carro do sonho em meio ao pesadelo

_E o carro do sonho?, pensei. Será que ele ainda vai passar? Mas não deu cinco minutos e, como num passe de mágica, surgiu aquela voz familiar dobrando a esquina. O carro do sonho, freguesia, não se rendeu à quarentena. Pois quem vive de sonho precisa sobreviver também. 

Toda vez que escuta o alto-falante, Totônio corre para as janelas acompanhar o motorista. Primeiro no quarto da mamãe, depois no quarto dele. Fica lá em cima da cama, esperando o carro passar. Como nosso prédio é recuado, nunca tivemos tempo hábil de descer as escadas e apanhar o sonho a tempo. Na verdade, nunca tentamos. E não é na quarentena que vamos arriscar. Que pena 😦 

Mas Totônio não gosta de comer sonho. Ele gosta de me contar seus sonhos. Hoje ele sonhou que estava passeando pela Torre Panorâmica, porque está aprendendo na escola sobre os pontos turísticos de Curitiba. Acordou e veio correndo me contar entusiasmado juntamente com a notícia de que estava sequinho de xixi (o que não era bem verdade). E eu prometi a ele que o primeiro lugar aonde iremos quando isso tudo acabar será a torre. 

Por enquanto permanecemos no bunker, na bolha da nossa nave-mãe. A quinta manhã de confinamento entre as paredes do nosso apartamento é mais um capítulo dessa experiência de muitas “ências”: paciência, resiliência, sapiência…

Como toda criança, Totônio é um poço de criatividade. Eu não preciso nem bolar atividade ou ir atrás de uma brincadeira mirabolante que ele já inventa um par delas. Nada como um paracetamol para aliviar minha dor de cabeça matutina e seguirmos na jornada de aventuras espetaculosas.

Primeiro, Totônio baixou mais um aplicativo com um joguinho chamado Talking Tom. Na hora de batizar o gatinho, ele escolheu o nome “Amor”. Depois, brincamos de caça ao tesouro. O piazinho desenhou o mapa para encontrarmos as moedas de chocolate espalhadas pela casa toda. Ele mesmo desenha a rota, esconde as moedas, encontra e depois…não come e as coloca sobre os Xs no mapa.

Também teve a corrida de obstáculos. Totônio começou a catar os brinquedos ao redor, EVA, puff, almofada, e ordenou tudo pela sala. Daí, começou a saltar. Outra versão do jogo, foi fazer zigue-zague pelos objetos. E assim continuamos nossos dias enfurnados na nave. Enquanto isso, a Índia se prepara para a maior quarentena da história, 1,3 bilhão de pessoas. Enquanto isso, o vírus chegou a Nova York como um trem-bala. Enquanto isso, a Olimpíada foi adiada pela primeira vez na história depois da guerra. Enquanto isso, tentarei contar uma história diferente pro Totônio dormir. Que desperte mais sonhos durante esse pesadelo.

O vírus e a corrida do álcool gel

Tempos de crise deveriam servir de ensinamento para evoluirmos enquanto pessoas, amigos, irmãos, enquanto seres humanos. Essas fases cíclicas pelas quais passamos deveriam provocar em cada um de nós um momento de reflexão. Pararmos um instante de olhar para o nosso umbigo e enxergarmos ao redor a fim de tentar, pelo menos, entender o motivo de tudo isso. 

Mas, por enquanto, não é o que ando percebendo por aí. Lembro que quando surgiu o temido H1N1, a personagem mais cobiçada da história era o álcool gel, produto que novamente está fazendo a fama com a chegada desse novo vírus, antes chamado de corona, agora de Covid-19. 

Teorias da conspiração à parte (será que foi criado em laboratório para a China, enfim, dominar o mundo?), a disseminação desse vírus mutante, que se espalha com mais rapidez do que o vírus da gripe comum e do H1N1, já provocou uma mudança radical no cotidiano da população mundial. Países em quarentena, pessoas isoladas, evitando contanto humano, trabalhando remotamente. Soa a mim um tanto metafórico. Se às vezes nos queixamos que as redes sociais nos repelem fisicamente, veio um vírus para nos separar de vez. Na Itália, pessoas pegam os ônibus sem abrir a boca com medo do contágio. Nesse mesmo país, moradores tentam passar o tempo cantando nas sacadas dos prédios.

Ao meu redor, porém, os hábitos continuam os mesmos. Pessoas reclamando que não conseguirão dar conta de trabalhar em casa e ao mesmo tempo cuidar do filho, impedido de ir à escola. 

Tomando o exemplo do restante do mundo e já vislumbrando o que poderia ocorrer conosco, imaginei que se fosse ao mercado dali uma semana não encontraria mais álcool gel, ou papel higiênico. PH ainda tem, mas o álcool, ah, esse só no mercado negro agora. Até armazéns que vendem produtos a granel estampam na vitrine: “temos álcool gel”. 

Hoje fui à farmácia para comprar o leite em pó do meu filho. Num intervalo de cinco minutos, duas pessoas perguntaram sobre o álcool. Uma mulher apavorada queria saber quando era a previsão de chegada.

Num mercado perto de casa acabou até o suco de laranja. Eu me pergunto: quem toma tanto suco de laranja em 15 dias? Será que quando saímos de férias parece que o mundo vai acabar também? 

Ora bolas, desde a pandemia de H1N1 deveríamos ter mantido esse hábito de usar álcool gel. E se não tem o tal álcool 70, use vinagre. Adapte-se. Crises são feitas para isso. Pare de reclamar e passe a meditar. Aproveite esse tempo, que sejam 40, 15 ou 7 dias, para refletir sobre seu estilo de vida, para ficar perto da família, para pensar na paranoia em que vivemos hoje. 

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Foto por Bruna Tovar Faro em Pexels.com

Portanto, acredito que a evolução do ser humano, no sentido de exercer a compaixão, a paciência, a empatia, mudar o foco para o outro, está longe de acontecer. O egoísmo, o desespero e o medo são tão contagiosos quanto um vírus.