O carro do sonho em meio ao pesadelo

_E o carro do sonho?, pensei. Será que ele ainda vai passar? Mas não deu cinco minutos e, como num passe de mágica, surgiu aquela voz familiar dobrando a esquina. O carro do sonho, freguesia, não se rendeu à quarentena. Pois quem vive de sonho precisa sobreviver também. 

Toda vez que escuta o alto-falante, Totônio corre para as janelas acompanhar o motorista. Primeiro no quarto da mamãe, depois no quarto dele. Fica lá em cima da cama, esperando o carro passar. Como nosso prédio é recuado, nunca tivemos tempo hábil de descer as escadas e apanhar o sonho a tempo. Na verdade, nunca tentamos. E não é na quarentena que vamos arriscar. Que pena 😦 

Mas Totônio não gosta de comer sonho. Ele gosta de me contar seus sonhos. Hoje ele sonhou que estava passeando pela Torre Panorâmica, porque está aprendendo na escola sobre os pontos turísticos de Curitiba. Acordou e veio correndo me contar entusiasmado juntamente com a notícia de que estava sequinho de xixi (o que não era bem verdade). E eu prometi a ele que o primeiro lugar aonde iremos quando isso tudo acabar será a torre. 

Por enquanto permanecemos no bunker, na bolha da nossa nave-mãe. A quinta manhã de confinamento entre as paredes do nosso apartamento é mais um capítulo dessa experiência de muitas “ências”: paciência, resiliência, sapiência…

Como toda criança, Totônio é um poço de criatividade. Eu não preciso nem bolar atividade ou ir atrás de uma brincadeira mirabolante que ele já inventa um par delas. Nada como um paracetamol para aliviar minha dor de cabeça matutina e seguirmos na jornada de aventuras espetaculosas.

Primeiro, Totônio baixou mais um aplicativo com um joguinho chamado Talking Tom. Na hora de batizar o gatinho, ele escolheu o nome “Amor”. Depois, brincamos de caça ao tesouro. O piazinho desenhou o mapa para encontrarmos as moedas de chocolate espalhadas pela casa toda. Ele mesmo desenha a rota, esconde as moedas, encontra e depois…não come e as coloca sobre os Xs no mapa.

Também teve a corrida de obstáculos. Totônio começou a catar os brinquedos ao redor, EVA, puff, almofada, e ordenou tudo pela sala. Daí, começou a saltar. Outra versão do jogo, foi fazer zigue-zague pelos objetos. E assim continuamos nossos dias enfurnados na nave. Enquanto isso, a Índia se prepara para a maior quarentena da história, 1,3 bilhão de pessoas. Enquanto isso, o vírus chegou a Nova York como um trem-bala. Enquanto isso, a Olimpíada foi adiada pela primeira vez na história depois da guerra. Enquanto isso, tentarei contar uma história diferente pro Totônio dormir. Que desperte mais sonhos durante esse pesadelo.

A desordenada mala da vida

A mala que guardou os macacões, as mantinhas, o cobertor, as fraldas, as luvinhas e sapatinhos de crochê – e acompanhou toda a espera do nascimento do primeiro e, talvez, único filho – agora vai e volta da segunda casa de Totônio. É um ir e vir com o qual ainda não me acostumei. 

A bolsa de fundo branco, riscas azuis e alça bege não se parece com malinha de bebê, que normalmente tem estampada uma coroa de príncipe. Nunca quis uma mala de príncipe. Acho kitsch demais. 

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Mascotinho do Totônio.

Como há quatro anos, a bolsa é novamente arrumada com capricho e cuidadosamente preparada para que nada falte, principalmente o coelhinho, o bichinho de pelúcia sem nome, que Totônio ganhou dos avós maternos na sua primeira Páscoa, aquela festa que representa a ressurreição de Jesus Cristo. A foto de Totônio com seis meses de vida, no bouncer de olhos arregalados, segurando o coelhinho, está pendurada num quadro na parede. O bichinho de pelúcia agora tem outro significado: transformou-se num objeto de transição, que leva o cheirinho do “lar oficial” de Totônio para sua outra casa.  

Quando a mala retorna, às vezes é difícil encontrar o mascotinho na bagunça: roupas limpas entrelaçadas com usadas, pijamas misturados com roupa de sair, cuecas embaralhadas com meias. Eu olho para o estado dessa confusão e me deprimo um pouco, porque me parece falta de cuidado, de atenção, de zelo, de carinho. Olhar para essa mala me passa uma sensação ruim, não só porque lembra união e separação, início e fim, mas, sobretudo, porque representa o estado de confusão que Totônio e eu estamos atravessando.

O modo como tudo é despejado e socado dentro da mala talvez seja a metáfora da pressa motivada por outro verbo com o qual também não me habituei: devolver. “Que horas posso devolvê-lo?”. Como se Totônio fosse uma coisa ou um carro ou um sei lá o quê. Nós devolvemos objetos dos quais não gostamos, devolvemos ainda o carro alugado, o vestido de festa emprestado, mas não crianças, filhos. 

Talvez fosse mais fácil superar determinadas fases da vida se conseguíssemos devolver sentimentos. “Meu amor por você se desgastou. Quero devolvê-lo. Toma aí”. E assim como numa prateleira vazia, um espaço desmemoriado em nosso ser estivesse pronto para receber uma nova dose de amor. Só que na vida real, dos plebeus, não funciona desse jeito.

Totônio, na verdade, não dava muita bola pro coelhinho, mas os dois foram obrigados a criar laços fortes e seguir lado a lado, da Páscoa ao Natal, essa festa que representa o nascimento de Jesus Cristo. Essa festa que costuma reunir as famílias em torno de uma mesa gigante com comida farta, amor farto, bebida farta e, por vezes, confusão farta. A confusão da mala. Na vida de Totônio, tudo é em dobro agora: casa, Natal, presente; talvez um dia, família. Meu desejo maior é que o amor, esse sentimento irreversível, venha sempre em dobro para Totônio nessa mala desordenada que é a vida.

O dia em que salvei meu pai

Meu super-herói não é mito. É real. De carne e osso. Usa capa, mas só se for de chuva. Voa só de avião. Mas, para mim, ele sempre teve superpoderes. Ele sempre me salvou.

Me salvou quando caí de bicicleta pela primeira vez no quintal de casa, onde havia grama verdinha, um pinheirinho, uma garagem com piso de lajota e uma família feliz. Me salvou quando não conseguia entender aquela regra chata de matemática. Me salvou quando eu queria sair com as amigas e não sabia dirigir. Me salvou quando precisei (e preciso) de dinheiro. Me salvou com apoio moral, com educação, segurança, carinho e amor. Me carregou no colo até o hospital quando tive uma luxação e não deixou que o médico engessasse meu joelho.

Queria me salvar quando precisava de emprego, mas eu, orgulhosa, dizia que – só desta vez – conseguia fazer tudo sozinha. Como fui injusta.

Mas teve um dia quando o inverso aconteceu. Papai havia caído, batido a cabeça e desmaiado na casa da minha vó, em Santos. Foi submetido a uma tomografia no pronto-socorro, que, aparentemente, não acusou nada grave.

De volta a Curitiba, numa tarde, ele caminhou quilômetros e se queixou de uma das pernas. Que precisava arrastá-la para andar. No dia seguinte, ele entrou no banheiro e não saía mais de lá.

_ Pai, tá tudo bem?

Quando abriu a porta, só dava risada. Ria, ria, ria. Não, não estava tudo bem.

Fui pra o trabalho (ainda me pergunto como consegui) e pedi que minha mãe me telefonasse caso percebesse alguma piora. Eu estava na redação do jornal, sentada em frente ao computador, quando o telefone tocou. Atendi trêmula e saí correndo. Não me lembro a que velocidade dirigi até o nosso prédio. Morávamos no quarto andar e foi uma odisséia descer as escadas. Meu pai foi carregado, de um lado, pelo zelador e, do outro, por meu irmão. E como foi difícil colocá-lo no meu Ka.

Também não me recordo como pude conter o nervosismo e dirigir até o hospital. Só sei que parei o carro na frente e, prontamente, surgiu um funcionário com uma cadeira de rodas. Meu super-herói sumiu pela porta da emergência. Sorrindo, sem saber se voltaria vivo de lá.

A agonia daquela noite foi uma das sensações mais horríveis que já tive. Eu chorava, chorava, chorava…cansei de chorar no saguão do hospital. Estava exausta, com o rosto ardendo com o sal de minhas lágrimas. Minha neurologista passou por mim, mas nem teve coragem de se aproximar. O marido dela é quem deveria operar meu pai, drenar o coágulo. Só que ele estava viajando e outro médico assumiu a cirurgia.

Foi uma noite interminável. Meu pai foi parar na UTI. E ele conta que ouviu alguém comentar sobre um erro na manipulação do cateter. Foi por pouco. Por 12 horas que meu pai se salvou. Um médico disse isso. Por apenas meio dia, ele não estaria aqui hoje pra abraçar seu neto. E Deus queira que ele possa salvar Totônio quando cair de bicicleta, ou tiver que decifrar uma equação matemática. Deus queira que ele viva para sempre.

 

Um acidente a caminho da escola

De carro ou a pé? – perguntei ao Totônio.

_ Pelo caminho, por aqui – respondeu o menininho cabeludo. Dois anos ele tem, e agora entra na escola no meio da manhã (pra ver se come melhor, sabe). Estamos atrasados e está prestes a chover. Por mim, colocaria Totônio na cadeirinha do carro e vrummmm. Mas não, o garotinho prefere ver as abelhinhas, as borboletas, o cachorro Jango. Prefere constatar que recolheram os galhos cortados que haviam sido deixados no meio da calçada.

Hoje, porém, estava incrivelmente chovendo. Chuva fina, mas pelo céu escuro, o toró cairia a qualquer instante. _ Vamos colocar o capuz, Totônio.

Peguei o guarda-chuva no carro e fomos nós, empurrando a mala de rodinhas de super-herói. _ Ih, mamãe, não, tem abelhinha…, resmungou Totônio. _ Elas não trabalham na chuva, xuxu.

Quando saímos do prédio, a chuva parou. Vamos tirar esse capuz e dar bom dia para as pessoas. Quem sabe encontramos alguma borboleta.

Ao virar a esquina da rua onde fica a escola, o cenário estava diferente, meio conturbado. Calor. Tiramos o agasalho. O guarda-chuva pendurado na mala. Totônio insiste em se desvencilhar da minha mão. Ele se solta pra correr atrás de um joão-de-barro. A mulher do passarinho está rente ao asfalto. Adiante, uma borboleta. Totônio quer sair atrás dela também. Pego firme na mão do meu filho. Explico a ele pela enésima vez que os carros descem a rua muito rápido e podem “passar por cima” do Totônio. Ele aceita e continuamos o trajeto.

_  Vixi, estão cortando a grama da casa do Jango. O cão está guardado, os portões abertos. Temos que desviar. Do outro lado da rua, lavam a calçada em frente ao casarão. Pego o menininho no colo, na marra, junto com a mala, guarda-chuva e agasalho para atravessar naquele trecho. Retornamos ao nosso caminho e nos deparamos com uma van estacionada ali, na calçada. Mais alguns passos e a quadra acabou. Totônio não quer colo. Quer atravessar sozinho. _ Só quando a mamãe disser já, ok?

Ufa, conseguimos!!! Só mais uma subidinha e chegamos à escola. Totônio dá tchau e entra contente. Eu saio de lá e noto que o zelador olha em direção à esquina de cima. E, realmente, percebo um grupo reunido e….um carro capotado. _ Parece que a criança estava na cadeirinha, disse o zelador.

Apesar de evitar ler/ver qualquer relato sobre tragédia desde que Totônio nasceu, precisava saber se estava tudo bem. Você pode largar a profissão, mas a notícia insiste em te perseguir.

Quando olhei para o carro, fiquei paralisada com os brinquedos caídos no asfalto: o trator, o bichinho de pelúcia. Quase chorei. Essa cena me lembrava tantas outras que tive de presenciar quando trabalhava no jornal.

Ao meu lado, um pai, em choque: olhos claros, arregalados, desesperados, segurando no colo o filho de chupeta. E uma mulher, com a mochilinha da criança de uns 4 anos de idade no braço; provavelmente a mãe. Todos usavam cinto de segurança no momento do acidente.

Pergunto se eles precisam de ajuda. _ Está tudo bem. Ninguém se machucou. Também vim aqui ajudar, disse uma moça que estava ao celular e conversando com testemunhas.

Então, percebo um carro, um Subaru vermelho, antigo. E acho que entendi tudo. Provavelmente cruzou a preferencial, como seeeempre acontece aqui no bairro. O pai, vinha descendo a rua, e deve ter jogado o carro no meio-fio e capotado. Como notou um cortador de grama, não deu tempo nem de ele frear: _ Olha, não tem marcas no chão, apontou para o asfalto.

Os pais e a criança foram gentilmente recolhidos a uma clínica médica que fica bem na esquina do acidente. O menino estava apavorado, mas não chorava.

Contei o que tinha acontecido para o zelador que não podia sair de frente da escola. E voltei pra casa, debaixo de chuva forte e aliviada, por chegar a um local de acidente e simplesmente oferecer ajuda e não ser mais obrigada a escrever sobre isso.

 

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Carro capotado. Menino estava na cadeirinha.