A Quaresma vai e a Quarentena fica

Toda vez que olho para o meu filho, costumo lembrar do dia em que Totônio nasceu. Ao ver aquele serzinho tão frágil, pensei: esse menino vai salvar o mundo. Meu companheiro de quarentena está salvando o meu mundo. Totônio foi concebido em 2 de fevereiro, dia de Iemanjá, também conhecida como Janaina. Como eu sei? A certeza era tanta que os primeiros enjoos só confirmavam o que eu já sabia. Também tinha absoluta certeza que daria à luz um menino e que esse menino teria nome de santo. 

Desde as primeiras alterações no meu corpo, chamava Totônio carinhosamente de “Gordinho”.  Eu passava tão mal que o exame de sangue acusou um nível de hormônio altíssimo. Na consulta ao ginecologista, já era possível ouvir o coraçãozinho de Totônio bater. Chorei. Eu sempre choro.

Essa quarentena é, na verdade, a segunda que Totônio e eu atravessamos juntos. A primeira foi durante o pós-parto. Se você pesquisar no dicionário vai encontrar que quarentena, entre os inúmeros sentidos, significa a fase de abstinência sexual, chamada também de resguardo. É o período pelo qual as puérperas devem passar até que corpo e mente se restabeleçam. Existem mulheres que simplesmente ignoram essa fase, talvez por pressão do parceiro, e nove meses depois estão lá, de volta à maternidade. 

Não seria nada mal se Totônio tivesse um irmãozinho. Quem sabe ele não me chamaria de cinco em cinco minutos para brincar ou simplesmente ver televisão com ele ou acompanhá-lo ao banheiro pra fazer xixi. Quem sabe eu poderia tomar café da manhã tranquilamente enquanto os dois brincassem sozinhos. Quem sabe.

Provavelmente, Totônio não terá um companheiro por parte de mãe. Esse é o problema de engravidar tarde, se separar, decidir estudar, ter que procurar emprego e emendar em outra quarentena, essa provocada pela pandemia de covid-19. Recorrendo ao Tesauro Eletrônico do Ministério da Saúde, a palavra passa a significar o “isolamento de indivíduos ou animais sadios pelo período máximo de incubação de doença”. E esse período de isolamento é bem provável que ocasione um baby boom, assim como aconteceu no pós-guerra.

Depois que Totônio nasceu, guardei várias roupinhas dele pensando na possibilidade de um dia engravidar novamente. Mas esse desejo foi se desmantelando, e aos poucos fui doando o enxoval e toda a mobília do quarto. Deve haver no mínimo umas 10 crianças que puderam aproveitar as coisinhas do guri. Confesso que ainda escondo umas pecinhas de roupa no armário dele, como a saída de maternidade que a vovó Silvia comprou. Vermelha para afastar mau olhado.

Vermelho também simboliza a cor do amor, da paixão, do coração, do sangue. Sangue que Cristo derramou para nos livrar do pecado. 

A Quaresma já terminou, mas a quarentena continua. 

No último dia que Totônio foi à escola, desejei feliz Páscoa para as profes porque a previsão era de que as aulas fossem retomadas na segunda-feira, 13 de abril. A diretora me olhou e ficou surpresa ao ligar os pontos. “Simbólico, não é mesmo?”, comentei.

Ou seja, a promessa era de vida nova nesta semana. #sqn

Na verdade, a vida nova começou com a quarentena. Pra mim, um pouco antes. Desde o ano passado, venho me adaptando a um mundo diferente, quando decidi viver um dia de cada vez. Dar valor ao presente, ao aqui e agora, entender o mindfulness, que virou modinha, mas é uma prática milenar que visa melhorar nossa qualidade de vida. Não é preciso ser coach para sacar que ficar preso ao passado e fazer planos para o futuro pode nos levar à ansiedade, depressão, frustração. Evidentemente, na prática, não é tão simples assim. O apego que temos ao passado e ao futuro é enorme.

Hoje, lê-se muito sobre isso. Todo site, todo blog, todo cronista, colunista, influencer, intelectual comenta sobre essa mudança de rotina que fomos obrigados a adotar por conta da pandemia, como fazer home office e aproveitar o tal ócio criativo, conceito desenvolvido pelo sociólogo italiano Domenico De Masi (cuja palestra tive a oportunidade de assistir ano passado). Problema é que essa criatividade precisa acontecer dentro de casa. 

Fato é que precisei abdicar da minha vida de luxo – que seria abrir mão do meu pilates, da minha diarista, por exemplo – para economizar. Se há uma meta que pretendo alcançar é viver com o necessário, lema que meu irmão abraçou há anos e que agora passa a fazer muito sentido. O tio Zé trabalha em mercado e está na linha de frente dessa guerra em que o Brasil já ocupa o 11º lugar no ranking de mortos, informação ignorada por essa gente que desrespeita o isolamento social.

Acredito que essa crise nos permite mensurar nossas prioridades. Só que, num mundo consumista, egoísta, de narcisos, exigir que todos alcancem esse grau de compreensão ainda é utópico. Certamente tudo isso servirá de lição de casa pra Totônio, que volta e meia vai para sua lousa; pega a caneta e finge que é professor. 

Daqui a pouco, ele acorda para procurar seus ovinhos. Para nós, essa Páscoa sempre será lembrada como a passagem definitiva para uma vida nova. Pois a esperança é a última que sucumbe ao vírus.  

easter eggs
Foto por Breakingpic em Pexels.com

Cheirinho de peixe no ar

Sexta-feira Santa. Acordo com cheirinho de peixe no ar. Afinal, pela tradição cristã, não se deve comer carne vermelha em ato de compadecimento ao sacrifício de Jesus Cristo. Sexta-feira da Paixão é dia de reflexão, meditação, de ficar em silêncio, lembrando a via crucis do filho de Deus, que deu sua carne e sangue pelos homens.

Minha mãe disse que era comum as pessoas ficarem em casa, sem ligar a televisão, em respeito à crucificação de Cristo e sua morte no calvário. 

Como me lembro muito pouco da época de catequese, fui pesquisar o motivo que originou essa tradição. Descobri que a carne vermelha, na antiguidade, era artigo de luxo para o povo. Na Idade Média, por exemplo, só era consumida em banquetes de nobres. 

São Tomás de Aquino explicou, em sua Suma Teológica, que a carne vermelha é mais saborosa e, portanto, seu consumo é mais prazeroso. Abster-se dela, então, seria um ato de sacrifício.

Por isso, devorar um bife tornou-se sinônimo de gula, um pecado capital. No site da Revista Galileu, encontrei a informação que a igreja orientava os fiéis a comer carne antes da quaresma, o que deu origem aos banquetes chamados “carnevales” (por isso o carnaval é a festa da carne!). Depois, nos quarenta dias antes da Páscoa, era o momento de abstinência. 

“Com o passar dos séculos, a carne deixou de estar presente somente nos banquetes e perdeu seu caráter simbólico de pecado. A orientação atual é que os católicos que desejarem se abstenham na Quarta-Feira de Cinzas, nas sextas-feiras da Quaresma e na Sexta-Feira Santa. Pessoas enfermas, idosas e crianças são isentas dessa orientação”, explicou a irmã Maria Inês Carniato, da Editora Paulinas, em entrevista à revista.

Acredito que, hoje, em tempos de pandemia de covid-19, adultos devem também estar liberados de comer carne vermelha, já que vivemos com tantas restrições (pelo menos para quem segue o protocolo #fiqueemcasa).

Quando eu era pequena, nós comíamos peixe toda sexta-feira. Não é porque seguíamos o código de direito canônico, mas era o cardápio da semana feito pela minha mãe. Se tínhamos que comer peixe, por que não na sexta? 

Segunda-feira era um dia mais light. De fritada de batata, por exemplo. Quarta, dia do frango. Quinta, do macarrão. Minha mãe também fazia croquetes, e eu amava as almôndegas e panquecas dela. Que saudade!

Mas quando chegava a sexta, eu torcia o nariz. Não gostava muito de pescada e lembro que um dia me revoltei. Me neguei a comer. Dona Silvia ficou nervosa e disse que eu só poderia me levantar da cadeira após comer tudinho. Hoje sinto falta da pescada de sexta-feira. Hoje adoro peixe e praticamente não vivo sem, principalmente após descobrir a culinária japonesa.

Como estamos vivendo num certo loop temporal, tipo “Feitiço do Tempo”, muita gente deve ter esquecido que hoje era dia de comer peixe. Espero que a Igreja Católica perdoe esses pobres fiéis que descongelaram carne moída para comer com nachos. Afinal, peixe gostoso é peixe fresco. Eu até anotei na agenda do celular o número de telefone da peixaria do Mercado Municipal, que está fazendo delivery. Sou cliente e o preço deles é muito bom. Hoje a carne branca não é tão barata e abundante como na antigüidade, mas o quilo da tilápia ainda continua sendo menos salgado que o da alcatra.

Totônio gosta muito de peixe e dia desses comeu um filezão. Mas ultimamente ele está adepto do quase-jejum. Come quase nada. Ontem, segundo informações do pai dele, jantou linguiça e morangos. Quatro morangos. Nem acreditei! 

Tem dias que eu me descabelo (ainda consigo, apesar do cabelo curtinho). Tem dias que apelo pra criatividade e faço carinhas com a comida. Que sacrilégio!

Nesta Sexta-feira Santa, foi mais complicado. Relatório do dia: Totônio acordou meio-dia; jogou Uno; comeu paçoca; tomou mamadeira e….só 😦 

Quando chegou em casa teve um pequeno surto de abstinência de doguinho. Eu disse que “não, não e não”. Até ele se acalmar e pedir chocolatinho. A paixão por chocolatinho e o meu sacrifício em negá-lo constantemente chega a me deixar sem forças. Consegui fazer um combinado: só daria mais chocolatinho se ele comesse brócolis. Deu certo! 

Totônio, com seu paladar doido, foi comendo brócolis intercalados com chocolatinhos. E disse que fará muitos “número 3” (puns) de brócolis amanhã. Aleluia! 

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