Verde que te quero verde

Domingo de Páscoa foi inesquecível. Depois de ganhar ovinho da mamãe, do papai, da vovó e do vovô, Totônio queria mais. Não chocolate. Mas hambúrguer de siri. Tudo culpa do Bob Esponja.

Pego o guri na casa do pai e vamos rumo à Meca da junk food: o drive-thru do McDonald’s. Lotado, mas suportável. Compro um lanche da felicidade, sem queijo, sem picles, sem praticamente nada.

_Que bebida, Totônio?

_ Água. Geladinha.

Totônio é assim. Pequeno, mas muito, muuuuuito exigente. 

Ele exige da gente. Muito. Demais. Pra caramba. A ponto de me deixar quase careca. Por isso já deixei meu cabelo curtinho. Fica mais fácil quando a queda acontecer.

_ Não esquece do alface, tá mamãe.

Claaaaaro. O único verde do lanche da felicidade é aquele do picles. Mas, como eu sou precavida e adivinho as coisas, tinha alface verdinha lavada na geladeira. 

_Qual o brinquedo?, pergunta a moça.

_ Putz. Qualquer um. O que faz aquele ali?

_ Nada. Nenhum faz nada.

_ Então, me vê aquele passarinho verde bicando alguma coisa (o passarinho era um corvo, na real).

Retiramos o pedido e fomos pra casa.

Na garagem, descubro que não me deram o brinquedo. Totônio começa a berrar na cadeirinha.

_Ok. Você venceu!

Como era perto, decidi voltar. Estacionei na rua. Peguei o guri no colo e entrei pela saída.

_Moço, vocês esqueceram de me dar o brinquedo. E o Danoninho também. 

Totônio não quer saber mais de Danoninho, só de chocolatinho. Mas eu paguei pelo combo inteiro, então eu mesma como essa coisa.

De volta à garagem. Taco um ovo dentro da mochila e coloco nas minhas costas. Com a mão esquerda, carrego outra sacola com mais ovo e a sacolinha do lanche da felicidade. No meu lado direito, o piá se encaixa no colo para alegria da minha escoliose e satisfação das minhas varizes. E vamos nós, rumo às escadas que levam ao quarto andar. Próximo passo é fazer mágica: transformar o sanduíche em “siriburguer”, que de siri não tem nada. Tá mais pra “vegburguer”. 

Tiro a carne (sim, veio com carne) e deixo as duas fatias de pão abertas para recheá-las com o mais puro e delicioso sabor de alface.

Sem que eu me desse conta, Totônio já havia devorados as folhas. Então eu pego a travessa de novo e faço uma montanha verde. Verde que te quero verde, ao melhor estilo Garcia Lorca e seu “Romance Sonâmbulo”:

Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las…

Fazia tempo que não me sentia tão feliz. Quando terminou, Totônio, meu verdinho, ainda queria meu pão. Mas eu não podia dar meu pão, porque ele estava pintado de amarelo e vermelho. Totônio só queria o verde da verdura, como o poema de Leminski que Caetano, o rei da paçoquinha de quarentena, musicou:

De repente
me lembro do verde
da cor verde
a mais verde que existe
a cor mais alegre
a cor mais triste
o verde que vestes
o verde que vestiste
o dia em que te vi
o dia em que me viste

De repente
vendi meus filhos
a uma família americana
eles têm carro
eles têm grana
eles têm casa
a grama é bacana
só assim eles podem voltar
e pegar um sol em Copacabana

Ou a verdura menos amarga da canção do Black Maria:

Verdura, Verdura
Pra saciar a fome de cultura
Verdura, Verdura
Plantando essa idéia e colhendo verdura madura
Que loucura
Me beija, me aleja, me pega e me cura

Gosto de Lorca, Leminski, Caetano, Black Maria, mas preciso deixar claro que não torço pra coxas nem verdes palmeiras. Essa cor, aliás, não é minha preferida, mas não posso negar que traz renovação e um pouquinho de esperança que Tistu, ops, Totônio volte a comer verde novamente.

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Cheirinho de peixe no ar

Sexta-feira Santa. Acordo com cheirinho de peixe no ar. Afinal, pela tradição cristã, não se deve comer carne vermelha em ato de compadecimento ao sacrifício de Jesus Cristo. Sexta-feira da Paixão é dia de reflexão, meditação, de ficar em silêncio, lembrando a via crucis do filho de Deus, que deu sua carne e sangue pelos homens.

Minha mãe disse que era comum as pessoas ficarem em casa, sem ligar a televisão, em respeito à crucificação de Cristo e sua morte no calvário. 

Como me lembro muito pouco da época de catequese, fui pesquisar o motivo que originou essa tradição. Descobri que a carne vermelha, na antiguidade, era artigo de luxo para o povo. Na Idade Média, por exemplo, só era consumida em banquetes de nobres. 

São Tomás de Aquino explicou, em sua Suma Teológica, que a carne vermelha é mais saborosa e, portanto, seu consumo é mais prazeroso. Abster-se dela, então, seria um ato de sacrifício.

Por isso, devorar um bife tornou-se sinônimo de gula, um pecado capital. No site da Revista Galileu, encontrei a informação que a igreja orientava os fiéis a comer carne antes da quaresma, o que deu origem aos banquetes chamados “carnevales” (por isso o carnaval é a festa da carne!). Depois, nos quarenta dias antes da Páscoa, era o momento de abstinência. 

“Com o passar dos séculos, a carne deixou de estar presente somente nos banquetes e perdeu seu caráter simbólico de pecado. A orientação atual é que os católicos que desejarem se abstenham na Quarta-Feira de Cinzas, nas sextas-feiras da Quaresma e na Sexta-Feira Santa. Pessoas enfermas, idosas e crianças são isentas dessa orientação”, explicou a irmã Maria Inês Carniato, da Editora Paulinas, em entrevista à revista.

Acredito que, hoje, em tempos de pandemia de covid-19, adultos devem também estar liberados de comer carne vermelha, já que vivemos com tantas restrições (pelo menos para quem segue o protocolo #fiqueemcasa).

Quando eu era pequena, nós comíamos peixe toda sexta-feira. Não é porque seguíamos o código de direito canônico, mas era o cardápio da semana feito pela minha mãe. Se tínhamos que comer peixe, por que não na sexta? 

Segunda-feira era um dia mais light. De fritada de batata, por exemplo. Quarta, dia do frango. Quinta, do macarrão. Minha mãe também fazia croquetes, e eu amava as almôndegas e panquecas dela. Que saudade!

Mas quando chegava a sexta, eu torcia o nariz. Não gostava muito de pescada e lembro que um dia me revoltei. Me neguei a comer. Dona Silvia ficou nervosa e disse que eu só poderia me levantar da cadeira após comer tudinho. Hoje sinto falta da pescada de sexta-feira. Hoje adoro peixe e praticamente não vivo sem, principalmente após descobrir a culinária japonesa.

Como estamos vivendo num certo loop temporal, tipo “Feitiço do Tempo”, muita gente deve ter esquecido que hoje era dia de comer peixe. Espero que a Igreja Católica perdoe esses pobres fiéis que descongelaram carne moída para comer com nachos. Afinal, peixe gostoso é peixe fresco. Eu até anotei na agenda do celular o número de telefone da peixaria do Mercado Municipal, que está fazendo delivery. Sou cliente e o preço deles é muito bom. Hoje a carne branca não é tão barata e abundante como na antigüidade, mas o quilo da tilápia ainda continua sendo menos salgado que o da alcatra.

Totônio gosta muito de peixe e dia desses comeu um filezão. Mas ultimamente ele está adepto do quase-jejum. Come quase nada. Ontem, segundo informações do pai dele, jantou linguiça e morangos. Quatro morangos. Nem acreditei! 

Tem dias que eu me descabelo (ainda consigo, apesar do cabelo curtinho). Tem dias que apelo pra criatividade e faço carinhas com a comida. Que sacrilégio!

Nesta Sexta-feira Santa, foi mais complicado. Relatório do dia: Totônio acordou meio-dia; jogou Uno; comeu paçoca; tomou mamadeira e….só 😦 

Quando chegou em casa teve um pequeno surto de abstinência de doguinho. Eu disse que “não, não e não”. Até ele se acalmar e pedir chocolatinho. A paixão por chocolatinho e o meu sacrifício em negá-lo constantemente chega a me deixar sem forças. Consegui fazer um combinado: só daria mais chocolatinho se ele comesse brócolis. Deu certo! 

Totônio, com seu paladar doido, foi comendo brócolis intercalados com chocolatinhos. E disse que fará muitos “número 3” (puns) de brócolis amanhã. Aleluia! 

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Ganhei o dia duas vezes

Hoje o cansaço bateu, mas eu ganhei o dia. Duas vezes. 

Aos 4 anos, Totônio não é o exemplo de piá bom de garfo. Bem diferente de quando começou a se aventurar pelo mundo dos sólidos. O menino comia de tudo. Era um pequeno glutão. Minha vida era amamentar e cozinhar. Dormir, pra quê? 

Eu fazia panelas de comida, sempre seguindo o mesmo ritual. Cortava os legumes bem cortadinhos. Suava por causa da beterraba. A abóbora já comprava em pedaços. Fazia tudo a vapor. E na parte debaixo, na água fervente, ficava o arroz e a carne do dia. Tudo cozinhava harmonicamente. Depois era só amassar, socar tudo, apertar tudo para transformar na papinha do Totônio. Nada de liquidificador. 

Teve uma época em que comecei a comprar fígado. Não entendo como alguém pode gostar de fígado de boi, mas é muito rico em ferro, como todos devem saber. E, segundo a pediatra dele, as crianças precisam e devem ingerir proteína animal. Certa vez ela me disse que virar vegetariano é uma opção para o futuro. Então tá!

Totônio também era uma máquina devoradora de morangos. Hoje ele gosta de pêssegos. Mas, aqui em casa, não come frutas e verduras como outrora. 

Na escola, o papo é diferente. Ele come melhor. 

Em tempos de quarentena, Totônio só pensa em comer carne de porco. Bacon, linguiça, doguinho. Mas hoje. Ah, hoje! Ele comeu peixe. Devorou um filezão de peixe. Deixou o macarrão e a batata frita de lado e partiu pro ômega 3. Por isso, digo que ganhei o dia!

Pra fazer Totônio comer, às vezes é preciso inventar moda. Apelar pra criatividade. Quando faço ovos mexidos, pego as forminhas de massinha dele para moldar os pedacinhos. Sai formato de nuvem, de círculo, de estrela. O duro é que não encontrei mais essas forminhas e ontem fiz um coração à mão livre. Mas Totônio não quis comer o meu coração. Na verdade ele nem partiu o coração. Então, só meu restou almoçá-lo hoje junto com o arroz e feijão que ele também dispensou na janta da noite anterior. 

Agora eu entendo perfeitamente o que meu pai fazia quando eu era pequena. Comia tudo o que estava vencido na geladeira, as sobras. Hoje eu faço isso com Totônio. Venceu o petit suisse? Então, bora comer. Mesmo sem vontade. Isso é ser mãe. Isso é não desperdiçar.

O segundo gesto que me fez ganhar o dia vale por mil. De repente, Totônio me puxa pela mão e diz:

_Mamãe, hoje eu vou dormir com você! 

Fez um high five e me levou pro quarto.

Totônio quase nunca dormiu na minha cama. Nos dois primeiros meses de vida,  era no meu colo e no colo da vovó que ele adormecia. E eu? Dormir pra quê?

Depois foi pro berço e pra caminha. Só que ele tem o hábito nada agradável de pegar no sono no sofá da sala. Eu costumo deitar pra um lado e ele pro outro. Quando ele chega no estágio do sono, digamos, mais profundo, eu o carrego para o quarto. Toda santa noite é assim. Minhas costas ainda sobrevivem.

Só que tem dias que eu capoto de sono, de tão cansada, e só acordo duas horas depois pra levá-lo pro quarto. Por isso hoje me surpreendi com o comportamento dele! Talvez tenha percebido meu cansaço misturado com um pouco de carência, e resolveu dormir na cama da mamãe. Agora meu peixinho está aqui do me lado, com seu edredom branco que ele não desgruda e o travesseiro que eu usava quando criança. Bons sonhos, Totônio! Sonhe com um belo passeio no parque! Sonhe em abraçar a vovó e o vovô! Sonhe com o futuro!

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