Pedindo ajuda aos super-heróis

Talvez eu não sobreviva até o fim da quarentena. E não é por conta do coronavírus, não. Depois de 13 dias de um surreal confinamento, começo a ficar com hematomas das brincadeiras de luta, de super-herói, de levar pontapé quando Totônio me chama pra eu ir dormir juntinho dele na caminha. 

Minhas pernas são uma combinação esteticamente nada agradável de varizes com manchas roxas. Meus braços são tatuados com arranhões e respingos de oleo de cozinha. Marcas da quarentena.

Mas é bem possível que haja uma esperança. Com um interfone velho que encontrei sem uso, Totônio conseguiu se contactar com aqueles que podem nos livrar dessa enrascada do coronavírus. 

_ Oi, super-heróis! Salva o dia com seus amigos, tá? Vocês têm que vencer antes do gigante. Tá bom? Beijo! Tchau.

Totônio só esqueceu de mencionar que o gigante mais temido agora é o vírus. Segundo fontes oficiais (https://coronavirus.jhu.edu/map.html), o corona já infectou 719 mil pessoas e matou 42 mil. Itália, Espanha e França estão entre os países com maior número de mortos em decorrência dessa “gripezinha”. 

No gigantesco Brasil, já são 6.800 casos confirmados e 240 mortes.

Asterix poderia se juntar aos super-heróis e nos ajudar com uma poção mágica mirabolante que fizesse desaparecer os zeros, os pontos, as vírgulas das nossas dívidas. Então, os boletos seriam miraboletos: miragem de boletos. Para desespero dos pobres mortais, o quinto dia útil está chegando e com ele vem o poder de negociação. Pois se pouco entra, quase nada sai. Simples assim.

Totônio se esforça a cada dia para tentar exterminar esse vírus da face da Terra. Anteontem, eu saía do banho e ele surgiu falando no iPhone. 

_ Com quem você está falando, Totônio?

_ Com a moça robô.

_ Com quem?

Era a Siri. Totônio perguntou pra Siri “que horas o vírus ia acabar”:

_ Ela respondeu que é às 23 horas, mamãe!!!!

E o guri se animou todo, porque 23h estava bem pertinho. O bate-papo entre os dois continuou. Totônio perguntou onde a Siri nasceu:

_ Fui projetada na Apple da Califórnia.

Totônio fez uma cara de desconfiança, de quem não entendeu muito bem essa história de Apple, e deu um boa noite caprichado à moça robô. A Siri respondeu:

_ Obrigada pela polidez. É uma das atitudes humanas que mais admiro.

No dia seguinte, acordamos com uma valsa tocando longe. Algum vizinho nos brindou com uma terapia auditiva logo no café da manhã. Seria Vivaldi? Seria Strauss? Seria o toca-discos do Batman? 

Só sei que o céu estava tão lindo que parecia um sonho. Quem dera esse pesadelo fosse uma bela mentira, uma brincadeira de mau gosto. Que amanhã, dia 2 de abril, esse zumbido todo desaparecesse depois de um leve assobio.  

P.S.: Nesse exato momento, escuto alguém ao violão tocando Pink Floyd. Wish you were here.

batman car comic book hero
Foto por Picography em Pexels.com

 

 

Brincadeiras improvisadas que rompem o silêncio

Abraço, tempo, emprego, liberdade, família. O confinamento nos permite valorizar  gestos, pessoas, coisas banais, corriqueiras, comuns. A dar valor àquilo que somos impedidos de ter e fazer. É como a máxima: “só damos valor quando perdemos”.

Neste sexto dia, recebi via WhatsApp um texto do Augusto Cury sobre exatamente o quanto a vida frenética nos impossibilita ou dificulta apreciar pequenas ações do cotidiano, seja um simples aperto de mão ou a possibilidade de ir à padaria. Mas ele não citou algo fundamental e que agora somos capazes de fruir: o silêncio. 

Do nosso apê, transformado em nave-mãe, o silêncio é mais intenso do que no domingo, quando Deus descansou. É uma calmaria que não remete propriamente à paz, mas à angústia, à solidão. Mesmo assim, é possível transformar essa quietude um tanto nervosa em serenidade, em introspecção, no silêncio interior. É hora de refletirmos, de priorizarmos o certo, de pensarmos no que é necessário. Uma infiltração no banheiro do vizinho pode esperar mais um mês para ser sanada. Quem não pode esperar é aquele que precisa sobreviver. Leio comentários pelas mídias sociais sobre o consentimento que vem do silêncio. Eu acredito que o silêncio pode ser uma bela resposta também. 

A mudez lá de fora é quebrada por alguns veículos que cruzam as ruas ou pelo latido dos cachorros, aos quais é permitido ir e vir. Aqui dentro da nave-mãe, a correria de Totônio é vibrante, mas não deve incomodar os vizinhos que, provavelmente, fazem home office. Afinal, não temos escapatória. 

À tarde, Totônio se revoltou, porque queria sair, ir ao parque com piscina de bolinha. Ele sabe que ainda não pode deixar o apartamento. Então, a lista de lugares para explorarmos na pós-quarentena aumenta: torre panorâmica e parque com a piscina de bolinha.

Pra mim, o piazote está se virando bem nesses dias de clausura. E eu, a cada dia que passa, amo mais meu filho e aprendo mais com meu companheiro de quarentena. Sua capacidade de improvisar vem superando minhas expectativas. Eu simplesmente não preciso inventar brincadeiras, porque ele mesmo tem as ideias e me intima a participar de todas elas. 

O cinto do meu roupão vira cabo de guerra. Na falta de um irmão ou amigo, o aspirador de pó vira companheiro de pega-pega. A mamãe aqui corre como uma doida atrás do guri. 

_ Vem amiguinho, vem me pegar!, diz Totônio.

Não sei se dou risada ou choro. Chorar não. Já chorei o que tinha que chorar muito tempo antes desta quarentena começar. Agora são risos, só risos (mesmo um pouco amedrontados).

Na falta de uma bola perdida (que já foi encontrada, por sinal), Totônio amassou um folha A4 – onde ele desenhou o mapa do tesouro no quinto dia. E essa bolinha de papel virou um dado que vai do zero ao sete. Um por um, ele montou os EVAs no corredor. O tapete se transformou num híbrido de amarelinha improvisada com jogo de tabuleiro. Totônio arremessava o dado de papel e imaginava os números e cada cor do EVA representava um desafio.

Quando a slime nova chegou (a que ele tinha estava grudenta e, infelizmente, não disponho dos ingredientes pra fazer uma meleca caseira), graças a uma compra online sugerida pela vovó, Totônio não se continha de felicidade. E os EVAs se transformaram em pista de corrida, com a geleca de obstáculo.

Boa parte das brincadeiras dele se baseiam na sua fixação por assistir Super Mario no YouTube e outros joguinhos. Ele reproduz o que vê do seu jeitinho fofinho de ser. Até comemora igual. O pódio sempre tem dois lugares. O puff mais alto pra ele e a almofada pra mim. Ele sempre é o segundo 1 e eu, o segundo 2. Totônio comemora com sua dancinha da vitória e sua risada maravilhosa, melhor do que qualquer silêncio da face da Terra. 

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Não há lugar como nosso lar!

O carro do sonho em meio ao pesadelo

_E o carro do sonho?, pensei. Será que ele ainda vai passar? Mas não deu cinco minutos e, como num passe de mágica, surgiu aquela voz familiar dobrando a esquina. O carro do sonho, freguesia, não se rendeu à quarentena. Pois quem vive de sonho precisa sobreviver também. 

Toda vez que escuta o alto-falante, Totônio corre para as janelas acompanhar o motorista. Primeiro no quarto da mamãe, depois no quarto dele. Fica lá em cima da cama, esperando o carro passar. Como nosso prédio é recuado, nunca tivemos tempo hábil de descer as escadas e apanhar o sonho a tempo. Na verdade, nunca tentamos. E não é na quarentena que vamos arriscar. Que pena 😦 

Mas Totônio não gosta de comer sonho. Ele gosta de me contar seus sonhos. Hoje ele sonhou que estava passeando pela Torre Panorâmica, porque está aprendendo na escola sobre os pontos turísticos de Curitiba. Acordou e veio correndo me contar entusiasmado juntamente com a notícia de que estava sequinho de xixi (o que não era bem verdade). E eu prometi a ele que o primeiro lugar aonde iremos quando isso tudo acabar será a torre. 

Por enquanto permanecemos no bunker, na bolha da nossa nave-mãe. A quinta manhã de confinamento entre as paredes do nosso apartamento é mais um capítulo dessa experiência de muitas “ências”: paciência, resiliência, sapiência…

Como toda criança, Totônio é um poço de criatividade. Eu não preciso nem bolar atividade ou ir atrás de uma brincadeira mirabolante que ele já inventa um par delas. Nada como um paracetamol para aliviar minha dor de cabeça matutina e seguirmos na jornada de aventuras espetaculosas.

Primeiro, Totônio baixou mais um aplicativo com um joguinho chamado Talking Tom. Na hora de batizar o gatinho, ele escolheu o nome “Amor”. Depois, brincamos de caça ao tesouro. O piazinho desenhou o mapa para encontrarmos as moedas de chocolate espalhadas pela casa toda. Ele mesmo desenha a rota, esconde as moedas, encontra e depois…não come e as coloca sobre os Xs no mapa.

Também teve a corrida de obstáculos. Totônio começou a catar os brinquedos ao redor, EVA, puff, almofada, e ordenou tudo pela sala. Daí, começou a saltar. Outra versão do jogo, foi fazer zigue-zague pelos objetos. E assim continuamos nossos dias enfurnados na nave. Enquanto isso, a Índia se prepara para a maior quarentena da história, 1,3 bilhão de pessoas. Enquanto isso, o vírus chegou a Nova York como um trem-bala. Enquanto isso, a Olimpíada foi adiada pela primeira vez na história depois da guerra. Enquanto isso, tentarei contar uma história diferente pro Totônio dormir. Que desperte mais sonhos durante esse pesadelo.