Memória trágica de Curitiba

A memória visual que tenho de Curitiba é trágica. Quando passo, por exemplo, pela região da Praça 29 de março, sempre me lembro de um andarilho encontrado morto lá, debaixo de uma marquise. Quando paro com o carro no sinal da Tiradentes, lembro aquela moça morta pelo ex-marido (ou namorado?) ao lado do Mercadorama. E por aí seguem minhas recordações de mortes, que vão me perseguir pelo resto da minha vida.

“I see dead people”. Esse era meu bordão no jornalismo policial; nessa vida nelson rodriguiana. Mas não eram fantasmas que eu via. Eram mortos reais. Mortinhos da Silva. Bebês que morreram em acidentes de trânsito na estrada, presos massacrados em rebelião, chacina em Colombo, crianças assassinadas por padrastos, chacina em Almirante Tamandaré, matadores de velhinhas indefesas, chacina em Curitiba. Eu vi todas essas pessoas mortas. Uma por uma. Desci barrancos; caí na lama; pisei em sangue pra ver cada detalhe. Cada faca cravada no peito. Cada bala que crivou o crânio.

Quase morri na BR-277 esmagada por um caminhão por causa da curiosidade de um  motorista irresponsável. O energúmeno freou bruscamente para ver um acidente e, por pouco, não causou outro. Me dá um frio na espinha quando lembro aquele caminhão quase tombando em cima de mim e do fotógrafo, no acostamento da rodovia. Lembro até dos meus batimentos cardíacos acelerados.

“Mas você precisa ver tudo isso?”, minha mãe sempre me perguntava. “Preciso. É a minha realidade”. E foi por muito tempo.

“Como é que você consegue comer uma macarronada depois de ver tanto sangue?”, era uma indagação comum. A gente se acostuma. Sente fome. Cria o tal escudo. A barreira. Infelizmente. Só que o meu escudo era feito de um material não muito resistente.

Trabalhar nessa área foi um dos maiores desafios na minha carreira (agora quase estagnada). Na verdade, um dos maiores desafios da minha vida. Por quase três anos fui repórter e depois editora no Diário Popular. Ainda engatinhava na função quando tive um dos dias mais pesados da minha vida. Fui lá para o Sítio Cercado (se não me engano), onde o padastro havia assassinado as duas enteadas.

Nós, da imprensa, esperávamos no portão da casa para entrevistar policiais e fazer imagens. Quando saem lá de dentro dois gavetões do IML e as duas crianças dentro. Eu olhei aquela cena. Engoli a saliva. Voltei para a redação. Escrevi o texto. Fui pra casa e pra balada. Mas eis que aquela cena surge, assim, como um relâmpago. Passei mal. Muuuito mal.

Hoje no prédio do extinto jornal funciona uma academia de ginástica. Minhas amigas lembram até hoje quando enviei um e-mail a elas avisando: “cuidado: cenas fortes”. Elas pensaram que se tratava de uma brincadeira. De mau gosto, sim. Quando abriram a foto anexada, chocaram-se com o legista do IML carregando uma cabeça degolada. A foto foi capa do jornal. No dia seguinte, uma saraivada de críticas por todo lado. Se fosse hoje, acho que essa capa nunca seria publicada.

Na Tribuna do Paraná, consegui pegar a fase do “espreme que sai sangue”. E foram incontáveis cenas de terror diário. Os plantões de final de semana eram um verdadeiro pesadelo porque chegávamos a cobrir mais de 30 homicídios na capital e região metropolitana entre sexta e domingo. Era preciso registrar tudo. Nossas idas ao IML eram frequentes. Até hoje eu não consigo entender como alguém consegue trabalhar naquele lugar. Sentindo aquele cheiro de chorume. O dia que entrei na sala de autopsia fiquei paralisada diante de um morto. Branco, parecia um boneco de cera. Me deu vontade de cutucar: “hey, tem alguém aí?”.

As capas da Tribuna sempre foram supercriativas. De certa forma era preciso para aliviar a dura realidade. Duas histórias foram curiosas. Havia dias, sim, em que ninguém era morto. Eram raros, mas existiam esses momentos. Aleluia! Então comemorávamos a lista do IML sem nenhum óbito por arma de fogo, arma branca, acidente etc.

Mas, e agora, o que eu vou gravar no meu boletim? – preocupou-se um colega de rádio.

Até que começamos a conversar com o motorista do rabecão sobre os “fantasmas do IML”. Fui anotando despretensiosamente os relatos mal assombrados do colega. Cheguei à redação, escrevi outras matérias e deixei a história das almas penadas para o final. Em cinco minutos a matéria estava pronta. E eu pensei: “nunca será capa do jornal”. Na manhã seguinte, adivinha?

Outro caso que também não tinha a menor pretensão foi a história do cliente de um restaurante de posto de combustíveis na beira da estrada, em Pinhais, que foi agredido até a morte por um segurança. Motivo: o cara insistia em fumar no posto. Não pode! É proibido! O delegado me contava o causo rindo ao telefone. O segurança alertou o rapaz várias vezes e partiu para a ignorância. No dia seguinte, a manchete da Tribuna era essa: “Cigarro mata”.

Mas o pior dos piores mesmo foi cobrir a chacina no Presídio Central em Piraquara (PCE), onde to-do santo ano praticamente tem rebelião. Mas essa história fica para um outro post.

Só sei que, mesmo tendo permanecido por tanto tempo nessa área, a morte é um assunto que me assusta. Mesmo tendo visto dezenas de mortos na minha frente, não consigo lidar direito com perdas. Principalmente de pessoas próximas. De pessoas queridas. Morte física, ou não.